31 janeiro 2013

À Deriva

Eu estou bem aqui e eu não estou mais sorrindo. Eu nem ao menos estou tentando. Eu não consigo mais fingir, eu não sei mais me esconder em mim desse jeito. E ontem, quando o mundo desabou e eu pulei os cacos tentando chegar em casa, minhas lágrimas forçaram as portas dos olhos que habito e eu as segurei, eu as prendi, eu mordi os lábios e não deixei nada escapar de mim. Mas não teve jeito, sabe, não tive pra onde correr, por que bastou um minuto ou dois, uma letra tua, uma canção antiga, e eu me esvaí bem ali onde estava, sentada no banco do ônibus ao lado de gente que não me conhece e não me quer, exatamente como foi naquela época em que minha depressão era feita de olhar e sorriso, da falta do abraço que eu queria (e que acabou que nunca tive). E agora eu não quero nada, eu não sei de nada, eu não sei de mim. E eu fico aqui, e eu choro, e eu tento o quanto posso manter tudo bem no fundo de mim, mas tá saindo aos poucos, vindo a passos lentos, e eu não aguento mais guardar tudo isso. Eu não aguento mais bancar a otimista, forçar o sorriso, contar a piada e esperar o abraço. Eu não aguento mais esperar por nada. Faz vinte anos que eu espero, que eu confio, que eu me forço a acreditar que sou feita de sorriso, de pequenas alegrias, dos amigos que amei. Mas eu tô sozinha nesse quarto escuro, as lágrimas estão rolando pelo meu rosto abaixo e eu não vejo ninguém, nem ouço nada além da minha respiração falhada e do meu medo estampando as paredes. Tô morrendo no meu silêncio, enquanto você acha que eu tô fazendo graça. E quando eu te liguei e você não me atendeu, eu parti em mais um pedaço, mais um fragmento que se perdeu pra sempre, me deixou pra trás. Por que enquanto eu te ligava e chorava sem parar, sentada no banco de couro quente do desconfortável ônibus cheio de desconhecidos, eu nunca estive tão sozinha. Eu nunca estive tão a deriva. E eu nunca aprendi a nadar. Então, obrigada por nada. Obrigada por observar enquanto eu me partia. Tô perdida agora, e eu já não sei se eu quero me achar. Não tá valendo a pena colar minha consciência pra sentir toda essa dor. Não tá valendo a pena mesmo.

27 janeiro 2013

Reflexo Vazio

 (ou Não é desculpa pra você se aproximar)

A porta rangeu e o vento gelado a tomou por inteiro enquanto corria os quatro cantos do quarto, mas ela tremia por motivos que iam bem além da brisa de inverno. O corpo pequeno tremia por que sentia os passos no chão do corredor, sentia o corpo estranho próximo, sentia o lento aproximar de alguém que ela não queria ver agora. Alguém que ela não queria ver nunca mais. Ninguém nunca mais.
- O que você está fazendo aqui?
Ela se escutou perguntar em voz rouca, furiosa, destemida e afiada como uma navalha, pronta para o próximo golpe.
Ela não queria companhia mais do que queria piedade e, com ela, os dois sempre caminhavam juntos. E como ela odiava aqueles olhos cheios de falsas promessas e fingida preocupação. Como ela odiava as palavras vazias e o consolo de toque singelo, superficial, que em nada curava o coração. Como ela odiava que a tratassem como boneca frágil, sem conserto. Como ela odiava saber que eles estavam todos certos e ela mesma ser digna da pena, ser frágil boneca quebrada sem conserto. Como ela odiava se olhar no espelho e não ver reflexo. Já fazia tempo que ela não era nem eco, nem sombra. Ela não era mais nada.
- Eu achei que você precisava de mim.
Ele responde, a voz seca, partida, hesitante.
Ele caminha alguns passos quarto adentro, braços esticados, pronto para o toque que ele sabe melhor do que esperar que ela permita que ele faça. Ela nunca deixa. Mas ele sempre tenta.
- Eu não preciso de você. Eu não preciso de ninguém.
Ele dá mais um passo adiante, sem se deixar abater pelas palavras ríspidas. Ele é forte, bem mais forte que ela, e ele sabe melhor que se deixar parar pela vontade dela. Ele sabe mais, ele acredita. Ele sempre soube, por que ela nunca soube nada.
- Mas você está partida. Está ferida. Está quebrada.
E isso é óbvio no olhar que ela carrega, no corpo que ela abandona, no passo que ela dá pra trás. Ela está partida e o sangue poderia jorrar por todos os poros, mas não o faz - só dor pulsa pra fora dela, e dor ele não pode ver. E, embora ele possa dizer a qualquer um que ela sofre, seus olhos se estreitam, como quem desconfia. Ele nunca soube por que ela sofre tanto, e ele nunca conseguiu tocar o coração de seus problemas. Ele nunca entendeu. Ela não sabe nem ao menos se ele tenta. Ele também não saberia dizer o quanto se esforça. Se é que se esforça. Se é que se importa.
- É claro que estou. - E a voz dela não quebra, não falha, não hesita. - Estou partida, estou ferida, estou quebrada. Vazei por tudo quanto foi brecha, e agora não sou mais nada. E dói que é uma desgraça. Mas é problema meu.
Ela é firme enquanto se define, ela é firme enquanto avalia o dano. Mas a lembrança do espelho vazio nunca deixou sua mente e ela sabe melhor do que achar que a vida tem cura, que tem cola, que tem jeito. Ela já se desfez e ninguém se importa se a dor que ela carrega vem sem história pra contar. Só o que importa é que ela sente, e ela sente tanto que escorre pelos olhos, que dobra as pernas à força, que cai num canto escuro. Só o que importa é o quarto vazio feito o reflexo, só o que importa é que ela não é ninguém. Ela não é ninguém e está doendo.
Os olhos dele também estão vazios.
Ela sabe que ele não a vê. Não, não de verdade; ele só vê a sombra da boneca que ela um dia foi. Ele só vê o que não tem conserto. E ela não se importa. Ela já passou por isso antes. Ela já encarou mais de um par de olhos que a olharam de cima, sem saber o que fazer com ela, sem saber se havia algo a fazer. E ela não liga. Ela não liga que ninguém ligue. Ela deixou de se importar faz tempo. Ela só não deixou de doer.

24 janeiro 2013

"The Stuff of Legends"


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      E ela sorri enquanto encara o relógio, o pensamento a mil eras de distância. Era tudo tão diferente na linha do tempo dela, tudo tão azul e cheio de estrelas, como num desenho feito a lápis por crianças cheias de sonhos. Ela costumava sonhar também. Costumava deitar no quarto que tinha uma constelação no teto, enrolada naquele cobertor infantil do Snoop, tentando arrancar sentido daquelas coincidências que a faziam se sentir tão viva. Ela adorava fingir que os encontros e desencontros e nomes na parede eram obra do destino, como se alguém a guiasse em direção ao desconhecido. Era uma boa fantasia. Daria uma boa realidade.
      Mas nada era assim tão bonito, tão perfeito, tão arquitetado para fazê-los existir juntos. Eles se encontraram uma vez no tempo, e acabara rápido, como uma explosão, e se criaram mil estrelas e constelações e ondas coloridas de gases espaciais que faziam o céu parecer o paraíso, um sonho acessível para todos que olhassem de longe. Mas ela nunca mais poderia tocar as estrelas. Sem ele, não.  E ela nem tinha vontade, sem ele. Ela só tinha vontade dele.
      E ela sentia tanta falta dos olhos castanhos enormes, do cabelo que apontava pra todas as direções, do sorriso que tomava todo o rosto e o fazia parecer um príncipe encantado, de olhos apertados, aquela expressão de felicidade que a faria cruzar o mundo, sem questionar. O que era mentira, é claro; ela fazia mil perguntas, dava mil caretas e estrelava as maiores discussões, nunca brigas, que os fazia rolar no chão, o som ecoando pela sala enquanto compartilhavam as maiores risadas, as mais intensas, mais verdadeiras. E então eles se olhavam e ela corava, e eles corriam, mãos dadas, em direção a uma aventura que nunca acabava. Ele e ela, juntos, como devia ser.
      Mas aí tudo acabava, tão rápido como começara. Um piscar de olhos e ele se fora, arrancado do seu toque sutil, jogado num mundo onde ela não existia mais. E ela ficava pra trás. Ela ficava pra outro tempo e espaço. Outro mundo. Sem ele, na vida que ele nunca poderia ter. E aí eles eram só lembrança, história, matéria-prima de lendas, de sonhos, do ato de saltar mais alto e tocar o céu. E quando ela olhava pra cima e suspirava, sentindo falta do cheio de estrelas no café da manhã e na mão que encaixa na dela oh, tão perfeitamente,  ela por vezes se deixava sorrir, porque sabia que, cedo ou tarde, ela o veria de novo, não importava o que ele dissesse a respeito. Ela faria diferença e viveria melhor, uma vida melhor, que significava mais. E ela ficaria com ele pra sempre. Ela prometera, afinal. 

20 janeiro 2013

Amizade em Conversas Hipotéticas (I)

- Se você quiser falar sobre isso, estou aqui.
- Eu não quero falar. Eu não quero nem ao menos pensar nisso tudo. Foi, sabe, ficou pra trás.
- Você e eu sabemos que não é assim que funciona.
- Vai ter que ser assim agora; eu não estou disposta a nenhuma outra maneira.
- Você costumava falar dessas coisas. Botar pra fora.
- E, pelo que eu me lembro, você sempre achou um saco. Sempre girou os olhos e achou pouca coisa. Sempre me achou pequena.
- Não seja injusta. Eu sempre estive lá.
- Desprezando tudo o que eu sentia!
- Era o meu trabalho, como sua melhor amiga, colocar você de volta no chão, ás vezes. Você se conhece bem, sabe que nem sempre o que te preocupa é motivo pra se importar.
- Eu escolhi não me importar agora. Com mais nada.
- Você não sabe fazer isso. Não é você.
- É sim. É quem eu sou agora. E não está me incomodando, não devia incomodar você também.
- Não te incomoda, é? Não sentir mais nada, não se importar de verdade?
                E o silêncio durou apenas dois segundos, mas era o suficiente para que ela reconhecesse na melhor amiga que aquilo doía. E ela podia ver agora o que antes só podia imaginar; aquela sua amiga, que sempre se importou tanto com tão pouco, agora sangrava as dores de se importar apenas com o fato de já não conseguir se importar. Era tudo bobo, distante e superficial e ficava pra trás com o raiar do dia seguinte, do passo adiante. E nada mais importava (além do não importar). E, se ela ainda fosse a mesma, choraria pelo eco das coisas que um dia lhe doeram. Mas ela não tinha mais lágrimas, por que não sentia nada. Ela chorava vazio e seco agora.
- Eu só não consigo mais. Não vai. Nada do que eu era antes “vai”. E mesmo vocês, que eram o que me bastava pra fazer feliz, agora já não fazem. Agora eu sou a mais, sentada no canto com um sorriso fingido enquanto eu observo o mundo do qual eu fazia parte. Agora eu sou a sobra. Eu estou vazando de mim mesma e não tenho lugar pra ir, pra me colocar, pra me fazer ecoar. Nem mesmo a música consegue me conter. Então eu me calo, eu me deixo, eu esqueço de me importar. E agora eu não sinto como se falar fosse resolver qualquer coisa. Eu sei que não vai, então qual é o sentido? Me torturar não vai ajudar.
- Mas...
- No final das contas, você estava certa. Eu precisava mesmo firmar pé. E foi feito. Meus pés não saem mais do chão. Então não vem agora me dizer que tudo o que eu preciso é voar. Já cortei minhas asas. 

Quer saber? Já fui.

Tô indo embora, tá? Do verbo nunca mais vou voltar. E eu tô dizendo adeus com todas as letras, que é pra você entender, que é pra você ver, por que eu cansei de viver dentro de mentiras. Eu tô chorando aberto agora, tô mostrando tudo e tô deixando rolar, por que essa coisa de me esconder atrás de sorriso ficou velha, ficou cansada, ficou dolorida demais pra continuar. Cansei de brincar comigo mesma. Cansei de proteger você, de proteger a mim, de fingir que tá tudo certo. Tá tudo errado. Já disse isso antes, mas disse sorrindo, e você não acreditou. Mas agora deu; de mim, de você, da gente, dessa coisa de viver assim. Então tô indo, tá? Tô indo e é adeus.

17 janeiro 2013

Areia de Praia

(...)
- Você está apaixonado pela Ana.
A voz de Marcela diz de repente, e ele repara que ela está com o queixo apoiado em seu ombro, os olhos focalizando exatamente as mesmas pessoas que ele observava há segundos. Ele não responde.
- E eu estava aqui pensando que você estava mais feliz agora que o Rodrigo está comprometido e todas as garotas ficam só pra você.
Gabriel encolhe os ombros.
- É bom.
É tudo o que ele diz.
- Mas não é o suficiente, não é? Por que a garota que você quer é a dele.
- Mas eu não posso querer a garota dele. Ela é... bem, ela é a Ana Julia. E ela é a namorada dele. E ele é meu amigo de infância.
- Eu não estou dizendo que você vai atacá-la enquanto ele dorme, ou que vai se declarar e fugir com ela no meio da noite. Estou dizendo que você está apaixonado.
Ele fica em silêncio.
- Você já sabe disso. Não é novidade pra você. Não faça essa cara de choque.
Ele hesita.
- Você é a primeira pessoa que percebe. Não acho que ela tenha reparado. Nem ele, graças aos céus. Eu não sei o que eu faria. Eu não poderia negar, não pra ele. E seria horrível, por que é uma traição, não é? É o que vocês garotas chamam de “furar o olho”. E como eu ia viver com o cara se ele soubesse que eu não consigo parar de pensar na garota que eu sei que ele ama? Por que cara, eu conheço o Rodrigo há anos e eu nunca o vi tão a sério com uma garota quanto com ela. E eu fico quase feliz por eles, por que eu sei que é de verdade. É tão de verdade quanto seria se fosse comigo. Por que eu também a amo.
- Bem, a gente não exatamente controla por quem a gente se apaixona, não é?
- Qual é, Marcela, você e eu sabemos que isso não é desculpa.
Ela afasta o rosto do corpo dele, e bate de leve nas costas para que ele se vire.
- Você é um bom amigo.
- Ah, ótimo. Todo mundo quer um amigo que fique a fim da sua namorada.
- Bem, não. Não nesse ponto. Mas você não está fazendo nada. E está fazendo o que pode pra sair do caminho e pra esquecê-la. É o que dá pra fazer com o que você tem nas mãos, no final das contas. Acho uma saída digna. Acho justo com eles, que são seus amigos, mesmo que seja horrível pra você. Quero dizer, você tem que estar doendo horrores por causa disso. Mas mesmo assim, você faz e você aguenta em silêncio, por que você se importa com eles e com sua relação com eles mais do que com o que vai dentro do seu próprio coração. E por isso, eu estou te dizendo, Zé, você é um bom amigo.
(...)

10 janeiro 2013

Broadway.

Eu nunca entendi essa mania estranha que você tem de acreditar que o coração das pessoas é feito pra quebrar. E por isso você pisa, você dança, você sapateia no peito de quem te ama. E eu assisti o espetáculo vezes demais dali da primeira fila pra agora me abaixar aos teus pés e dizer que é amor. Sei melhor do que deixar você chegar assim tão perto que eu vire teu palco. Em cima de mim você não vai brilhar, amor. Mesmo que eu seja o palco certo pra você. É que comigo não tem musical, não tem canção pela metade, não tem passo de dança errado, não tem luz, câmera ou sonho de verão. Comigo não tem sapateado não, meu bem. Comigo você não dança.


08 janeiro 2013

E eu que não acredito em desistir...


Êxtase. Eu já não sinto o êxtase. Esse é o problema.
Eu tenho medo. Eu tenho muitos medos. Isso também é um problema.
Confiança. Eles não confiam em mim. Not at all. Not a little.
E eu não posso voar sem asas.
Happy ever after, after all this time…?
Eu nunca tive ideia nenhuma sobre qual era o plano. Eu só queria ir embora. Pra longe. Pra nunca mais.
Troco minha alma por um pouco de paz.
Troco-me inteira por outra chance.
Aceito doações de um pouco de ar novo, aceito migalhas de felicidade com prazer e qualquer pedacinho de recomeçar é bem-vindo.
Me aceita. Me aceita. Me aceita. Por favor, me aceita.
Me livra. Me livra. Me livra.
Pra não me sentir sozinha, pra não me olhar no espelho, pra não sentir mais nada e não mais chorar.
Fight or fly... far away.
Você prometeu. E me enganou. Eu acreditei e sobrevivi só para encontrar um portal vazio. Um baú velho cheio de ar. E dos meus sonhos, transformados em pó.
Eu que não dou essa sorte.
Eu que não dou essa sorte.

04 janeiro 2013

Esperança



O convite para a festa de ano novo aparecera no ultimo minuto e, sem nada para usar e sem vontade nenhuma de passar a virada usando roupas velhas, passara a mão no vestido que a mãe lhe dera de presente de natal – que ela detestara – e o vestira de qualquer jeito, com pressa, entrando no elevador aos saltos enquanto encaixava nos pés os sapatos com os quais romperia o ano novo.
Mal pisara na festa, no entanto, se arrependera: o vestido era verde, maior do que ela tinha costume de usar, com um decote muito baixo na parte de trás e não tinha, de modo geral, muito a ver com ela - ela não estava em nada se achando atraente. E lá do outro lado estava o tormento de todo o seu ano velho: usando branco, parecendo sensacional e com os olhos mais azuis do mundo brilhando para ela, ainda parada na porta do salão, repensando seu armário.
E ela o evitara o quanto pode durante toda a noite, pulando de grupo em grupo, bebendo com desconhecidos, dançando musicas novas e antigas que faziam seu corpo vibrar uma felicidade nova e quase desconhecida de fim de ano. E na hora da virada ela suspirou bem fundo e gritou pro céu junto com aquela pequena massa de pessoas adoráveis, disposta a deixar tudo pra trás, a tentar tudo novo (de novo),  a fazer parar as lágrimas que escorriam sem motivo e a sorrir mais, sem razão, com vontade, sem hora ou lugar. E mal comemorara, virara sua taça e dera seus abraços, sentiu os braços dele em volta da sua cintura, a voz familiar mergulhando em seus sentidos, os desejos clichês de feliz ano novo ecoando pelo peito adentro. Ela sentiu o coração resistir e se viu preparada para abrir mão do instinto adolescente, se viu feliz, se viu satisfeita e pronta para olhá-lo nos olhos. Era ano novo e era hora de dizer adeus. Era hora de dizer nunca mais pros desejos secretos que lhe habitavam a alma, e não os atos, durante todo o ano anterior – agora era tudo passado e ela seguiria em frente. Girou no abraço para encarar o azul perturbador e intenso.
- Feliz ano novo, princesa! – Ele disse no apelido e voz familiares, e ela sorriu sincera, retribuindo o comprimento. – Não consegui falar com você a noite toda.
- Muitos conhecidos. Conversei com muita gente.
- Você estava fugindo de mim, isso sim. Nem consegui apresentar você aos meus amigos. Eu trouxe os caras do trabalho...
- Bem, você pode me apresentar a eles agora... – Os olhos dele brilharam demais por um milésimo de segundo, tão rápido que ela pensou ter imaginado, como quem avalia e gosta do que vê.
- Não é importante.
E ela revirou os olhos, por que era desses pequenos comentários que seu coração se alimentava, vez ou outra, desses pequenos mimos que a faziam sentir como a única coisa que merecia a atenção dele no mundo todo. Ela o detestava quando ele a fazia se apaixonar um pouco mais.
- Bem, você que disse que...
- Você está linda. – Ele interrompe enquanto ela sorri, sem acreditar. – E você está duvidando.
- Eu não gosto do meu vestido. Não consigo imaginar por que alguém mais gostaria.
- Mas é bonito. E está ótimo em você. – Ele diz e, tomando uma das suas mãos, faz com que ela dê uma volta para que ele a examine melhor. Se demora um pouco a mais quando ainda está de costas. – Definitivamente ótimo.
- Pare de checar a minha bunda, por favor. É ano novo, você deveria cultivar hábitos melhores.
- Bem, então você não deveria usar vestido que... – Ele se interrompe. – Bem, na verdade, eu gostei da cor.
- É verde.
- Exatamente, verde! E já que é assim, te desejo muita esperança...
- E eu lá quero esperança? Já cansei de esperar. Eu quero mais desse ano, eu quero que aconteça. Já deu de mais de ser paciente. Deu demais e não deu em nada.
 Ele ficou em silêncio por um segundo.
- Bem... então...
- Então?
- Então... que aconteça?
 Ela o olhou por outro segundo inteiro, que se arrastou por eras, se arrastou por um ano, se arrastou por todo o momento em que ela reparou que, por mais que não quisesse mais esperar, ali estava ela, esperando dele que percebesse que era hora de acontecer. Suspirou.
- Eu não aprendo.
Ela se censurou, o coração dançando no peito enquanto ele a olhava confuso, a expressão tão deliciosamente perdida que ela se perguntou se ele fazia de propósito. E ela se deu conta de que estaria para sempre esperando que ele a notasse, que a amasse, que a tomasse para sempre. Suspirou, indignada consigo mesma.
- Eu nunca mudo.
- Não entendi.
- Você não precisa.
 Foi tudo o que ela disse antes de colar os lábios de champagne nos dele, de unir as mãos, os corpos, os dedos nos cabelos e as mãos dele pela cintura e o paraíso no abraço em minutos que levaram meses. E quando ela se separou dele ainda não era meio de ano, era meia noite e meia e parecia diferente, era diferente, e ela se prometeu ali mesmo não mais esperar nada dele. Ela se prometeu ali dar dois passos pra trás e procurar outro lugar, outro alguém, alguém que não fizesse dela alguém cujo peito transpirasse esperança. Esperar não faz bem pro peito não. Esperar a impedia caminhar.
- Uou.
É tudo o que ele consegue fazer sair, a testa colada na dela, a respiração meio falha, o sorriso meio indecente, meio contente, meio surpreso.
- Aconteci. - Ela diz, simplesmente.- Depois de um ano, aconteci.
- Você está há um ano pra me beijar? Por que eu tenho certeza que já fizemos isso antes.
- Não.  Estou há um ano pra fazer isso direito. Pra fazer significar alguma coisa.
- Você devia ter feito antes, então. Bem antes. Bem, bem antes. Lá-no-primeiro-dia-antes.
Ele diz, inconformado, os lábios passeando pelo pescoço, pelo ombro, pelo rosto. Os braços dele ainda envolvem a cintura fina no vestido verde e ele não parece disposto a deixa-la partir, embora ela esteja pensando que é sua chance de ir agora, que é o momento de deixá-lo para trás, de deixar de esperar. (É que secretamente ela ainda o deseja para sempre, entre os braços, entre os lábios, entre os dias e noites e todos os anos, mas não quer mais desejar ou acreditar que pode acontecer). Ela não quer mais ansiar que ele venha e a tome e leve para sempre. O nome disso é amor platônico e ela não tem 15 anos há anos, e isso não parece correto, não sente correto e a deixa meio adolescente. E convenhamos, quem quer ser adolescente de novo quando já se é jovem e está no topo?
- Não teria significado nada no primeiro dia, do mesmo jeito que não significou nada depois dele. Como você mesmo acabou de dizer, nós já fizemos isso antes.
- Você devia ter feito desse jeito. Você devia ter posto seu coração na coisa.
- Cala a boca. Por que você não fez? Por que você não pôs o “seu coração na coisa”?
- Eu nunca achei que você fosse da minha liga. Você é completamente diferente das mulheres que eu... Você é outro mundo. Muita areia, sabe como é.
- Cala a boca.
- Mas você é.
- Sério. Cala. A. Boca.
Ele ri.
- Mas o que é isso? Me beija e não me deixa falar? Fala sobre significar alguma coisa e...
- Significa alguma coisa agora por que nós somos amigos. E aí deixa de ser apenas alguns beijos. Não é mais um rolo de ano novo. Pelo menos pra mim, de qualquer forma.
 Ele afasta o rosto um pouco para olhá-la melhor, as mãos ainda tomando a cintura macia.
- Eu nunca levei a gente na brincadeira.
- Você também nunca me levou a sério.
- Isso não é justo.
- Eu não estou culpando você. Eu nunca fui clara. Eu nunca sou. E eu provavelmente nunca vou ser, por que eu não consigo me convencer de que esse é o meu papel. E esse foi o problema. Eu esperei você. E você nunca chegou.
- Eu estou aqui agora. E você também. Não é o importante?
E ela fica em silêncio como quem se mede, como quem se define, se convence. Ela hesita e ele percebe, mas é a vez dele ser paciente, de esperar. Ele também a quer, afinal de contas.
- É o importante. Hoje.
- E amanhã. E depois. Eu ainda vou estar aqui. E você aí.
- Amanhã ainda é longe. Falar de amanhã torna tudo...
- Uma questão de confiança.
E ela o encara e sente tudo o que ela é sacudir e ela sabe que o que está em jogo aqui é continuar ou não no caminho incerto que a trouxe até essa adolescência fingida que fazia o coração sacudir. Ela suspira.
- Por que você faz essas coisas? Eu não acabei de falar que eu não quero mais esperar? Que eu quero que aconteça, que eu quero mais do que me sentar e vê se dá certo?
- Então esse é o seu momento. Faz acontecer. Confia em mim.
E ela sabe que ele tem razão e quer afastar os olhos da certeza dele, mas não consegue, por que o azul dele sempre foi carcereiro, enlouquecedor e poderoso demais no castanho-escuro gentil que ela exibe discreta, doce e suavemente. Ela sacode a cabeça.
- Eu vou me arrepender, não vou?
- Não vai. Você sabe que não vai.
- Não, eu não sei. Esse é o problema. Eu apenas posso esperar que não me arrependa. E acredite em mim; eu passei muito tempo brincando de esperar e é um saco.
E ele aproxima o rosto novamente, os lábios pousando suaves nos dela, o sussurro audível apenas para ela, como tem que ser, como sempre é com eles.
- É um ano novo. Não tem nada de errado com um pouco de esperança. –E ela não consegue evitar sorrir sob os lábios dele, por que ela sabe que ele não está errado (embora deteste pensar nessa verdade). – E não tem nada de errado com um namorado também.
E os olhos dela se alarmam e o corpo tenta se afastar para encará-lo melhor como que por reflexo, mas os braços dele são correntes que a mantém exatamente onde estão, e ele aproveita os lábios entreabertos da surpresa para tomá-la em beijos de novo, mais uma vez e ainda uma outra antes que se dê por satisfeito.
Os olhos dela se mantêm fechados enquanto ainda presa no abraço acolhedor e familiar do amigo-tormento-do-ano-velho-novo-suposto-namorado-do-ano-novo.
- Muito bem. Estou novamente no jogo da esperança. Sou um patinho no lago esperando para ser abatido.
- Não se preocupe, serei um bom guardião do lago.
- Cala a boca.
Ele ri e deposita um beijo suave no ombro da mulher entre seus braços.
- Bem, eu ainda estou disposta a conhecer seus amigos. De acordo com o seu jogo da esperança, é um ano novo e eu posso arrumar um namorado entre eles.
- Xiu. – Ela ri. – Você é minha. E é por isso que a gente se conhece há mais de um ano e você nunca encontrou com nenhum deles.
- Achei que eu fosse muita areia pro seu caminhãozinho.
- Bem, a esperança é a ultima que morre.
E ela encara os olhos azuis que tanto adora e ri, e a gargalhada se perde na felicidade e no ritmo da festa e é ano novo e tudo bem esperar. A esperança é o que mantém a gente de pé, no final das contas. A confiança é o que leva a gente mais longe. O segredo é acreditar que a gente pode fazer. E aí as coisas dão certo. Dão certinho.

Feliz Ano Novo!
01-01-2013

02 janeiro 2013

Caro Amor Perdido,


Escrevo-te essa carta diante do fim de mim e dos dias. Escrevo-te por que sei que gostas de cartas, de papel, de letras e palavras e dos sentimentos bem expostos, como obras de arte, como finais felizes. E mesmo que nossa história não tenha sido nenhum conto de fadas – exceto pela bruxa, que você há de convir que era eu – ainda me sinto amiga das flores debaixo da tua janela e ainda me sinto perto do teu peito o suficiente para te endereçar minhas ultimas palavras de afeto. Meu último sopro de existência. Minha ultima obra de arte colorida.
E por favor, não me julgue impertinente por reaparecer assim tão de repente. Eu sei bem que nós nos decidimos por caminhos diferentes, mas você foi meu melhor amigo e único amor por anos, e é difícil não pensar apenas em você quando meu coração quer dizer algumas palavras. Amar uma última vez.
A verdade é que tenho visto o céu desabar e o chão partir sob meus pés, e tenho pensado muito em você. Porque você gostava de céu azul e de margaridas, feito eu, e quando eu vejo tudo o que te era caro desaparecendo feito fumaça, meu peito aperta, por que eu quero que você seja feliz, cercado do seu azul, de felicidade, de sorriso e de quem te ama.  Mesmo que não seja eu. Na verdade, principalmente por que não sou eu aquela que te amava feito o mundo inteiro. Você merece quem te ame, e saber disso foi o que matou a gente. Foi o que fez nós dois sermos um para cada lado de novo (o que já era sinal suficiente de que algo estava errado: nós dois deveríamos ter sido apenas um desde o começo). Mas não se engane e não me deixe te enganar; eu te amei com todos os meus sorrisos e lágrimas, e rasgou em mim tanto quanto em você descobrir que não era suficiente pra fazer feliz. Que não era tão grande quanto parecia, que não era tão real ou feito de flores. Me doeu feito o inferno deixar você partir. É que eu também não queria desistir da gente – a gente era tanto calor e margaridas sobre a mesa, sob a janela, pintadas nas paredes e nas portas. E você sabe bem que eu não acredito em finais, principalmente quando se é assim tanto amor feito a gente. Quando se é tanto amor, simplesmente.
Mas te escrevo não por que me arrependo do nosso fim, porque eu sei bem que este foi correto, mas por que você ainda é meu de formas indizíveis e insondáveis, e negar isso não faria a mim (ou a você) nenhum bem. Não agora, quando nada mais importa. Eu te escrevo pra te dar adeus, de verdade, para sempre, com meu coração transbordando do amor que a gente viveu e não deu, por que você foi, e talvez seja para sempre, aquele que me fez suspirar antes deu entender que suspirar não era tudo. Antes deu entender que amar é um pouco mais. Escrevo-te pra também te dizer adeus e obrigada pelas flores. Pra deixar o beijo eterno que eu não posso mais te dar escrito em letras, em palavras, em sentimentos. Escrevo-te pra te amar um pouco mais, agora definitivamente, pra registrar para o infinito que o nosso amor existiu, viveu, pulsou e morreu, mas só um pouco, só nos dias sem sol. Por que quando ele brilha e entra pela janela do meu quarto e bate naquele quadro que você me deu, hoje ainda parece ontem e nosso amor ainda é vivo no meu peito e tudo parece melhor e mais puro e pintado de amarelo, feito as portas do meu último apartamento, que a gente pintou enquanto brincava de beijar em cores. Nós seremos sempre amor no amarelo. Nós seremos sempre amor no sol, nas lembranças, nas saudades. E agora nós seremos sempre amor no fim do mundo. Nós seremos sempre amor.

Daqui pra sempre sua, mesmo sem ser, 

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