27 janeiro 2013

Reflexo Vazio

 (ou Não é desculpa pra você se aproximar)

A porta rangeu e o vento gelado a tomou por inteiro enquanto corria os quatro cantos do quarto, mas ela tremia por motivos que iam bem além da brisa de inverno. O corpo pequeno tremia por que sentia os passos no chão do corredor, sentia o corpo estranho próximo, sentia o lento aproximar de alguém que ela não queria ver agora. Alguém que ela não queria ver nunca mais. Ninguém nunca mais.
- O que você está fazendo aqui?
Ela se escutou perguntar em voz rouca, furiosa, destemida e afiada como uma navalha, pronta para o próximo golpe.
Ela não queria companhia mais do que queria piedade e, com ela, os dois sempre caminhavam juntos. E como ela odiava aqueles olhos cheios de falsas promessas e fingida preocupação. Como ela odiava as palavras vazias e o consolo de toque singelo, superficial, que em nada curava o coração. Como ela odiava que a tratassem como boneca frágil, sem conserto. Como ela odiava saber que eles estavam todos certos e ela mesma ser digna da pena, ser frágil boneca quebrada sem conserto. Como ela odiava se olhar no espelho e não ver reflexo. Já fazia tempo que ela não era nem eco, nem sombra. Ela não era mais nada.
- Eu achei que você precisava de mim.
Ele responde, a voz seca, partida, hesitante.
Ele caminha alguns passos quarto adentro, braços esticados, pronto para o toque que ele sabe melhor do que esperar que ela permita que ele faça. Ela nunca deixa. Mas ele sempre tenta.
- Eu não preciso de você. Eu não preciso de ninguém.
Ele dá mais um passo adiante, sem se deixar abater pelas palavras ríspidas. Ele é forte, bem mais forte que ela, e ele sabe melhor que se deixar parar pela vontade dela. Ele sabe mais, ele acredita. Ele sempre soube, por que ela nunca soube nada.
- Mas você está partida. Está ferida. Está quebrada.
E isso é óbvio no olhar que ela carrega, no corpo que ela abandona, no passo que ela dá pra trás. Ela está partida e o sangue poderia jorrar por todos os poros, mas não o faz - só dor pulsa pra fora dela, e dor ele não pode ver. E, embora ele possa dizer a qualquer um que ela sofre, seus olhos se estreitam, como quem desconfia. Ele nunca soube por que ela sofre tanto, e ele nunca conseguiu tocar o coração de seus problemas. Ele nunca entendeu. Ela não sabe nem ao menos se ele tenta. Ele também não saberia dizer o quanto se esforça. Se é que se esforça. Se é que se importa.
- É claro que estou. - E a voz dela não quebra, não falha, não hesita. - Estou partida, estou ferida, estou quebrada. Vazei por tudo quanto foi brecha, e agora não sou mais nada. E dói que é uma desgraça. Mas é problema meu.
Ela é firme enquanto se define, ela é firme enquanto avalia o dano. Mas a lembrança do espelho vazio nunca deixou sua mente e ela sabe melhor do que achar que a vida tem cura, que tem cola, que tem jeito. Ela já se desfez e ninguém se importa se a dor que ela carrega vem sem história pra contar. Só o que importa é que ela sente, e ela sente tanto que escorre pelos olhos, que dobra as pernas à força, que cai num canto escuro. Só o que importa é o quarto vazio feito o reflexo, só o que importa é que ela não é ninguém. Ela não é ninguém e está doendo.
Os olhos dele também estão vazios.
Ela sabe que ele não a vê. Não, não de verdade; ele só vê a sombra da boneca que ela um dia foi. Ele só vê o que não tem conserto. E ela não se importa. Ela já passou por isso antes. Ela já encarou mais de um par de olhos que a olharam de cima, sem saber o que fazer com ela, sem saber se havia algo a fazer. E ela não liga. Ela não liga que ninguém ligue. Ela deixou de se importar faz tempo. Ela só não deixou de doer.

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