21 novembro 2014

Ciumeira.



         Não faço ideia de como fomos parar na minha cozinha, depois de tudo. E a minha expressão não era nada simpática e meus gestos estavam longe de suaves. Na verdade, nem imagino por que os pratos não estavam se quebrando com o meu "toque gentil". Eu bem queria que eles quebrassem, para atirar os cacos de cerâmica na cabeça dele.
         Ele era meu melhor amigo, o meu único porto seguro e o meu colo de todas as horas. Eu me escondia nele com mais frequência do que gostaria, mas nunca escutei muitas palavras de reclamação sobre isso. Não sérias. Pelo menos, não muitas que eu levasse a sério (ah, os privilégios de ter um melhor amigo compreensivo).
         E ele se aproxima de mim sem fazer barulho, como já é de costume, e eu me seguro para não sorrir, porque, ao menos em teoria, eu estava severamente chateada com ele. Ou, ao menos, eu deveria estar.
- Eu sei que não está tão chateada quanto quer parecer, Isa. Está só fazendo birra - de novo.
         Espero meu coração voltar ao lugar de origem antes de respondê-lo. Mesmo que eu já conheça bem o silêncio de seus passos, sua voz surgindo de repente em meu ouvido sempre me tira do eixo e sacode meus pensamentos. Eu bem gostaria de dizer que é só por causa do susto.
- Eu estou muito chateada. - Eu digo, voz dura. É pelo menos uma meia verdade, então não me sinto culpada. Ou talvez seja verdade nenhuma. É tão difícil me manter chateada com ele.
- Tá nada. - Ele diz, se encostando na pia ao meu lado.
         Parece errado tê-lo ali, bonito demais pra qualquer padrão, recostado ao meu lado na zoneada cozinha do meu apartamento modesto. Admito que organização dos utensílios domésticos não era meu forte, e se não fosse por ele todo dia por ali, meu apartamento provavelmente seria apenas um caos cercado por paredes coloridas. Suspiro, sabendo que perdi o ponto da nossa conversa devaneando sobre a limpeza pendente na área e sacudo a cabeça, buscando algum foco. Ele deixa escapar uma risadinha.
- Eu talvez não esteja. Mas apenas talvez. - Acrescento, por que o típico sorriso "eu já sabia" que eu detesto tanto toma todo o seu rosto. - Mas você tem que entender que foi um babaca, então eu deveria estar chateada. Muito, inclusive. Foi vergonhoso você agindo daquele jeito no bar.
- Você está exagerando, Isa. Não foi nada demais. Eu fui apenas lógico.
- Não, você foi um idiota fazendo ceninha. E um total, eu não sei... - Ele me olha com os olhos insolentes. - menininho ciumento.
- Por favor, Isa!
- Então me diga o que mais pode significar você fisicamente me arrancar dos braços de outra pessoa.
- Significa zelar pelo seu bem estar. - Ele responde, parecendo muito seguro de sua desculpa.
- Em que planeta? E, pior ainda, quem te deixou tomar tais "medidas cautelares" pelo meu bem estar?- Minha voz é rígida e eu já posso sentir a irritação crescendo em ondas no meu peito, e eu desconto a frustração batendo os copos agora lavados na pia.
- Aquele cara ia obviamente se aproveitar de você. Por que eu deixaria isso acontecer?
- Ele não ia se aproveitar de mim!
- Claro que ia. Ele já estava cheio de mãos.
- E?
- E o que? Você é pura e inocente. Você é essa coisinha pequena e delicada e eu jamais poderia ficar lá vendo aquele cara se aproveitar de como você é compassiva.
- Eu não sou compassiva. - E a palavra sai com tanto veneno dos meus lábios que eu mesma poderia ter engasgado com ela. Mas sigo em frente, furiosa. - Eu não deixo as pessoas fazerem o que querem comigo. Sei cuidar de mim muito bem, obrigado.
- E nós dois sabemos quão bem isso normalmente termina. Uma dica: eu e você, barras de chocolate e muitas, muitas lágrimas nas minhas camisas.
          Ele diz, simplesmente. Os braços se cruzam no peito de novo e ele parece definitivamente chateado, como se eu tivesse feito algo errado. Meu humor - se é que era possível - consegue piorar.
- Quem você acha que é pra vir até a minha casa e dizer na minha cara que eu não posso tomar conta de mim mesma? - Ele abre a boca pra responder, mas eu não o deixo. Ele já se incriminou o suficiente. - Eu tenho 22 anos, Ian. E nesses 22 anos, apesar dos tropeços, eu me aguentei muito bem sem sua interferência, obrigada. Você chegou muito tarde se quer brincar de irmão mais velho comigo, porque eu já tenho dois e estou dispensando um terceiro. Volte ao seu cantinho de bom amigo e fique lá apena observando, quer eu me arrebente ou não. Sua função é me dar suporte, não colocar barreiras. Não cabe a você decidir o caminho que eu vou seguir, as bocas que eu vou beijar ou as camas nas quais vou me deitar. Mal e porcamente, você pode opinar, se, e apenas se, eu pedir sua opinião.
- Uau - Ele diz, levantando as mãos em derrota. - Desculpa. Já entendi. Não sou ninguém. Não faço mais.
- Acho bom.
         Eu digo, respirando pela boca, tentando recobrar alguma compostura.
- Mas não acho justo. Somos amigos há anos. Eu me importo com você e não quero ver você se entregando a um qualquer que não te merece.
- Você não tem como saber quem me merece ou não, Ian. E nem cabe a você julgar isso. Cabe apenas a mim decidir quem melhor se encaixa na pessoa que eu sou, quer você goste como eu faço isso, quer não.
- Desde quando você é tão assertiva?
- Sempre fui. Você que sempre gostou de me pintar como a garotinha frágil por que eu confiava em você pra ser meu porto seguro.
- Em minha defesa, você me usou de escudo vezes incontáveis ao longo do tempo em que nos conhecemos.
- E eu agradeço imensamente. Mas isso ainda não te dá o direito de interferir se eu não pedir por ajuda. É minha vida e são minhas decisões.
         Ele fica em silêncio um segundo e então resmunga, vencido:
- Eu não sou retardado, eu sei que você pode tomar conta de si mesma. Mas eu não consigo evitar. Eu quero te proteger. Eu quero que eles deixem as mãozinhas e os braços e os corpos bem longe de você. Você é boa demais pra eles.
- E o nome disso, Ian, meu amor, é ciume.
- É claro que é. - Ele responde, mas ironia pinga de todas as letras.
         Eu reviro meus olhos.
- Estou sendo lógica. - Eu digo no mesmo tom, fazendo uso de suas próprias palavras enquanto termino de organizar a pia. Quando me viro de volta, ele está bem mais perto, a expressão de menino levado usual de volta aos rosto bonito. - O que, agora?
- E se for ciume? E se tudo o que eu quiser é que eles fiquem longe por que quero ser o único a ficar perto?
         Ele pergunta, braços já rodeando minha cintura, olhos intensos nos meus, passos trazendo-o para cada vez mais perto. Eu pisco, surpresa.
- Bem... Você ainda não tem direitos sobre mim ou sobre minhas escolhas. - Eu informo, e ele concorda com a cabeça, aceitando meu argumento facilmente. Ele está tão perto que, seu me inclinar, posso tocar seus lábios com os meus. - E eu ia ter que pensar sobre isso.
- É claro.
Ele concorda, a voz um sussurro. A minha, como num reflexo, também diminui o tom pela metade.
- Mas eu imagino que poderíamos trabalhar essa sua nova necessidade. Isso é, se você deixar essa atitude de lado e se comportar.
- Parece que chegamos a um acordo. - Ele diz, lábios já colados nos meus, olhos fechados contra minha pele.
         Estou hiper consciente dele tão próximo. Nunca antes respirei o mesmo ar que meu melhor amigo, não importando quão próximos nós fossemos ou quantas noites tenha passado em sua companhia.
- Eu prometo que vou te deixar caminhar livre, se você me deixar seguir de perto. Eu só quero ficar junto, de verdade. - Ele diz, e a voz é um pedido de desculpas.
         Eu entreabro meus lábios para dizer-lhe sim, mas não preciso. Ele mergulha em nosso beijo, o primeiro, e nos é resposta suficiente.

14 novembro 2014

Suicídio.

E no silêncio ela chora, as lágrimas engolindo cada pedaço dela, molhando todo lençol, fronhas, travesseiros, pelúcias, cortinas, panos, tantos panos que ela usa pra se proteger.
E a água salgada é enxurrada rolando rosto abaixo, encharcando, afogando, sufocando, prendendo a respiração e apertando o peito, por que quem é que vive essa vida de merda, essa vida cansada, essa vida que nem vivida é.
E a depressão engolfa, mas ela é tão fraca e ela nem tenta e ela só dorme, ela se encolhe, ela não se move, ela nem tem pra onde ir.
E a depressão sufoca, mas ela não tem nada, ela faz corpo mole, ela quer a atenção, quer fazer a gente rir, quer fazer cena, como se fosse atriz.
E a depressão carrega a arma, acaricia a bala, faz buraco, faz sangrar, faz morrer.
E a depressão acorda, a depressão sufoca, a depressão prende no corpo a menina que não quer viver.
E a depressão move, a depressão empurra, a depressão leva os passos pequenos até o armário do banheiro, à cesta de remédios, aos comprimidos pequenos, redondos, letais.
E a depressão beija a testa, a depressão despede, a depressão dá o adeus, o alento, a atenção e a risada, a ultima risada, a despedida da vida que ela não quer mais forçar.
E a depressão acena e as mãos encostam nos lábios e as pílulas vão garganta abaixo e ela espera pra morrer.




E a depressão agora passa pra você. 




Sente falta de mim, por favor.

10 julho 2014

Despedida.

A verdade é que tem meses que a minha alma é silêncio, que meu amor é silêncio e que minhas letras morreram. E nessas horas é melhor encarar a verdade de frente. Não consigo mais escrever.

(Morri pra tudo isso. Morri pra eu e você, pra eu e vocês, pra sentimentos que não tem lugar em mim. Foi bom. Durou demais. Adeus).

02 junho 2014

Em outras águas.


E assim um dia, como quem acorda de um sono longo, reticente de abrir os olhos, querendo prolongar o delírio do  flutuar, eu me apaixonei. Caí em piscinas ora cinza, ora verdes, e me deixei afogar. E eu tentei, juro que tentei, navegar pra longe, pro país seguro do não em terra firme, mas não teve jeito. Quando me vi, já estava bem no meio do oceano, sem ter pra onde nadar, sem querer fazer nada além de mergulhar, abraçar, me esconder no profundo do espaço entre o pescoço e o ombro, feito pra mim, pra me acolher. E quando eu vi, era amor, era seu nome rasgando minhas paredes, eram minhas esperanças indo morar em novas terras, distantes, frias, geladas, com direito a um diferente fuso horário e uma linguagem toda nova morando na ponta da língua. E eu tentei resistir e fincar o pé aqui nas minhas terras firmes de ventos quentes, mas, quando eu vi, meu coração já tinha ido e meu corpo, pobre coitado, mal amado, mal aquecido, mal estruturado, ainda estava bem aqui. Tão, tão longe.

12 maio 2014

Mais uma dose


- O que você acha que está fazendo?
- Beijando você.
Meus olhos se arregalam, mas não sou capaz de negar você assim tão de perto. E como da primeira vez, me perco num mundo em que somos só eu e você e os segundos em que meus olhos se fecham duram algumas eras. É o inferno.
- Achei que a gente não ia mais fazer isso. Achei que você ia voltar com a sua namorada.
- Mas você é bonita demais.
- Cala a boca.
- E é mais que isso também. Você sabe.
- Para, por favor.
- Eu vou embora amanhã. Eu não quero ir pensando que eu devia ter feito isso.
- E como isso pode ser justo?
- Nunca foi justo. Eu sempre tive data pra ir embora. – Minha expressão desanima e ele sorri aquele sorriso maroto que eu me acostumei a odiar nas duas semanas que passamos juntos. Ele acaricia meu rosto, a expressão dele quase curiosa, quase doce. – Você queria que eu ficasse mais?
- Não. Na verdade, estou louca pra você ir embora. – Eu digo, rebelde, mas ele pousa os lábios sobre os meus e o sorriso enfurecedor me desarma por completo.
- Mesmo? – Ele está brincando comigo, eu sei, mas eu não consigo evitar ceder um pouquinho. Ou muito.
- Talvez. Ah, cara, eu odeio você.
- Nah, que nada. Você não teria vindo todo dia de tão longe se não gostasse de mim.
- Eu só não queria que você ficasse sozinho, por que seria uma droga. E eu ia me sentir meio mal. Então eu meio que fiz por mim, eu juro. Por que eu sou uma pessoa legal.
- Claro que é. – Ele concorda, os lábios agora descendo pelo meus pescoço, mandando todas as vibrações erradas pelo meu corpo. – Mas você gosta de mim. Pode admitir, eu sou o seu tipo.
- Baixinho e convencido? Não são os meus preferidos.
Eu arrisco, mas você não me dá atenção. Você não está prestando atenção em nada que não seja pele, na verdade.
- Não adianta negar, você veio todos os dias.
- Você é um babaca, sabe. – Eu digo, e você concorda com a cabeça, braços ocupados em me abraçar bem perto. – Meio que doeu meu ego quando você explicou as coisas da primeira vez. Eu me senti idiota. Um pouco usada.
- Desculpa. Eu gostei de você, e eu meio que precisava da companhia.
- Eu sei. – Minhas mãos já não estavam exatamente me obedecendo, cruzando meus braços ao seu redor e se entranhando no seu cabelo sem ordem específica. Era familiar demais. – Foi por isso que eu continuei vindo. Além do que, você não era uma companhia tão terrível, e eu estava de férias.
Ele se afasta um pouco pra me olhar nos olhos, mas ao o suficiente para que nossos braços larguem o abraço um do outro. Não faz maravilhas a minha já danificada linha de raciocínio.
- Então, você gosta de mim?
- É, é.
Eu admito, e o sorriso que se estende em seu rosto é tão convencido que eu me arrependo de ter aberto a boca – mas também me faz querer beijá-lo, então fico em silêncio.
- Então vamos fazer isso. É minha última noite, minha última chance de ficar com você. Eu não quero desperdiçar.
- Mas...
- A gente vê o resto depois, isso é agora. Última chance. Última noite. Você e eu.
E é errado e eu não devia, mas ele está tão per e é só por essa noite – a última noite – e eu não consigo resistir. Meus olhos se fecham, eu nos aproximo e o beijo e me perco sem dar muito atenção pra seja lá o que minha mente diz. Suspiro.
- Por que é seu aniversário. Por que eu nunca vou te ver de novo. Uma noite.
- Uma noite.
Ele repete, os olhos absurdos resplandecendo e eu não sei mais identificar o que é sanidade. A ideia até me assusta. Mas ele sorri, e quem se importa?
Nossos lábios não se deixam a noite toda, e a mao dele na minha sente tao familiar que machuca um pouco. Mas é a última noite, então eu aproveito, e peço mais uma dose.

É a última vez, afinal de contas.

24 abril 2014

Constelação Amanda


Meu melhor amigo me encara meio de lado, meio frustrado, meio vencido. Já estou acostumada com sua hesitação, mas a derrota no azul acinzentado é de alguma maneira inédita e assustadora. Fico em silêncio enquanto continuo contando as estrelas de plástico que ele ainda tem coladas no teto. Como se ele nunca tivesse crescido.
- Eu acho que ela vai terminar comigo.
- Não seja medroso.
- Não é medo. - Ele responde rápido, ignorando minha censura. - É fato. Ela quer tanto de mim que já não enxerga que não tenho mais nada a entregar. É cansativo.
- Você quer terminar?
Eu pergunto, levantando uma sobrancelha. Ainda não me mexi e meus olhos ainda estão, de alguma maneira, colados na constelação que forma meu nome, lá perto da porta. Nem me lembro quantos anos já fazem que ela está lá, que eu estou aqui. Tenho sido constante na vida de Renato há tanto tempo, que o tempo deixou de significar qualquer coisa.
- Honestamente? Eu não sei. Mas não parece relevante, de todo modo. Ela vai terminar e pronto.
- Bem, se for assim, ela é uma idiota. Você é um amor e se ela não consegue ver isso, é uma vadia louca.
- Ah... Obrigado, eu acho. - Ele hesita e eu deixo escapar uma risada, me virando de lado para encará-lo também.- Acho que você é a única pessoa que pensa assim, no entanto.
- Não fique muito animado, é minha obrigação como sua melhor amiga.
- Mais pra minha única amiga, isso sim.
- Não seja dramático.
- Você sabe que é sério.
- Bem, então estou feliz que você tenha pelo menos a mim pra te amar. - Eu corto, sem paciência pra síndrome de solidão que o acomete de vez em quando. Ele suspira então, e meus olhos o engolem, decifrando cada detalhe de seu rosto como que por vontade própria. Eu e minha mania feia de me assegurar que ele está bem.
- E você me ama, não é?
- Claro. O que tem aí pra não amar? Qualquer um amaria.
- Você é tão positiva, Amandinha... - Eu escolho os ombros, incapaz de negar o óbvio. - As vezes eu me pego querendo que a gente fosse alguma coisa mais.
- Nunca vai acontecer, Rê. Eu sou sua melhor amiga.
- Tá, mas e se não fosse?
- Você está tentando se livrar de mim?
- Amanda. - Ele pressiona, a voz firme martelando meus ouvidos, e eu reviro meus olhos. - Se a gente não fosse melhor amigo, você ia me amar?
- Não sei. Quero dizer, como eu ia conhecer você com essa profundidade se eu não fosse sua melhor amiga? - Ele não responde, apenas me encara, o cinza dos olhos parecendo pinicar a minha pele em todo lugar. Meu humor subitamente se torna aborrecido. - Talvez. Provavelmente. Eu tento não pensar muito sobre isso. Feliz?
- Então você pensa sobre isso?
Ele pergunta, sorriso dançando nos lábios finos, um ar de vitória sobrevoando suas feições.
- Ah, por favor, Renato. Eu te conheço há anos. E, de alguma forma, a gente sempre acaba no seu quarto, assim, todo enrolado um no outro. Então é, o pensamento já me ocorreu vez ou outra. Eu tendo a ignorar.
- A gente tem mesmo essa mania de acabar todo embolado. -Ele concorda, um risinho finalmente escapando peito afora. Seu rosto se torna sério antes de continuar, no entanto - Então...  Se eu te beijasse aqui e agora... Não seria o fim do mundo, né?
- Não seria um apocalipse zumbi, não. - Concordo, incapaz de perder a chance. - Mas seria uma péssima ideia.
- Por que?
- Melhor amiga, lembra?
- Para de usar o título feito um escudo. Isso só quer dizer que a gente se dá bem.
Eu bufo, pouquíssimo feminina, e deixo minha mão escorregar janela afora, observando minhas unhas e fugindo da conversa em questão. Ele estica a própria mão, entrelaçando nossos dedos contra o vento suave do fim de tarde de maio. Não posso dizer que não é confortável.
- Você tem namorada, Renato. Sossega.
- Que você acabou de chamar de vadia louca, se não estou errado.
- Oops. - Eu digo, mas não estou envergonhada. Nós já passamos dessa fase há pelo menos uns cinco anos.
Ele se aproxima, dobrando o corpo para perto do meu e embora eu resmungue alguma reclamação, não me movo um centímetro. Ele cola o nariz no meu, a respiração quente causando uma revolução de pequeno porte no meu cérebro. Antes dele colar os lábios nos meus, eu já sei que não vai dar certo. O que não impede que o beijo dure eras. O que não impede que nossos dedos entrelaçados deixem a janela e passem a habitar meus cabelos. O que não impede que todas as palavras que eu pronuncie dali pra frente sejam contra os seus lábios.
- Essa não foi a melhor ideia que você já teve.
- Eu sei. - É tudo o que ele responde, o sorriso menino estampando o rosto familiar. - Mas e daí, né? Você sempre vai estar bem aqui. Vale tentar.
- Você está terrivelmente seguro de mim, para um cara sem outros amigos.
 - Não é como se você fosse a algum lugar. Seu nome não está escrito nas estrelas a toa, Amanda.
- Não seja cafona.
Eu aviso, e ele concorda, risada eclodindo entre nós tão forte que não tenho certeza de que também não sai de mim. Respiramos devagar até restar só o silêncio, nossas testas ainda coladas, nossos olhos tão próximos de uma maneira quase familiar. Não consigo evitar lembrar todas as noites que passamos juntos, lado a lado, falando besteiras e dissecando heróis de histórias em quadrinhos. Não consigo evitar pensar que isso ia acabar acontecendo, cedo ou tarde. A gente sempre se entendeu um pouco demais. A gente sempre esteve bem ali.
- Acho que eu vou terminar com ela.
- Faz o que quiser.
E ele me toma ao pé da letra. Ele me beija de novo.


13 abril 2014

Vai (E não volta mais).

Eu quero tirar teu gosto dos meus lábios. Por que queima a pele e machuca a alma e deixa cicatrizes em lugares muito bem escondidos de mim que você tenha sido o último a me ter tão perto, entre os braços, selando meus lábios com os teus e entrelaçando teus dedos pelo meu cabelo, fazendo correr pela minha espinha o melhor tipo de arrepio. E me mata que o ultimo abraço que me tirou do chão seja teu, que a ultima vez em que eu fechei os olhos e me senti em casa foi cercada de você. Me machuca que eu não possa lembrar o que é doçura sem ter você como referência. Você estava aqui. Você esteve comigo. E eu te senti, só você e você inteiro, em todos os cantos de mim que tem consciência e sentem saudade.
E eu te odeio por isso. 
E odeio ainda mais que eu não consiga esquecer, não importa quantas fotos eu rasgue ou quantas vezes eu grite pras paredes e pros amigos e pras pessoas passando na minha calçada que eu quero mais é você longe da minha mente. Você ainda está aqui e eu ainda consigo ver claramente os teus olhos quando eu fecho os meus, aquele estúpido tom de verde iluminando minhas memórias como uma droga de um farol. Eu odeio isso. Eu odeio que eu queira tanto vê-los de novo. Que eu queira estar perto de novo. 
Então, por favor, faça parar. Me faz parar de querer rasgar meu cérebro em tiras apenas pra fazer cessar os pensamentos tão súbitos e constantes sobre você. Sobre nós. Então, por favor, vá embora. Deixe minha mente de uma vez. Deixe meus lábios de uma vez. Deixa minha vida de uma vez.
E não volta mais.

06 abril 2014

Funeral.

Sua vida não era ruim. Não era absurda, impossível ou horrorizante. Não era pesada, incontrolável nem daquelas de dar dó. A vida fez com ela apenas o que já havia feito com tantos outros. Mas ela, que nem era de papel nem nada, se desmanchou com o impacto. Assim, bem aos olhos de todos, bem a vista, sem pudor. E foi se retorcendo, encolhendo, diminuindo até caber num quarto (na cama), numa caixa (de madeira), numa gaiola tão pequena que a física da coisa parecia impossível (a vida).
E ela mesma bateu a tampa e se escondeu lá dentro, covarde que sempre foi, e pediu, por favor, para deixarem-na em paz. E lá dentro, apertada, encolhida, desfeita e compactada, ela respirou fundo e, sem forças, sem vontade e sem querer, decidiu que nunca mais.
E enterraram a caixa no chão.



14 março 2014

Epifania


- Eu quero você.
   Ela levanta os olhos da caneca entre as mãos e o encara, sem palavras e sem expressão. O espaço entre eles já não é tão grande, apenas alguns passos, e ele não se acovarda. Ela tampouco se afasta, e ele não evita cruzar o pouco de cozinha que resta e se aproximar dela de modo definitivo.
   Ela ainda não disse palavra, mas perto dela nunca pareceu tão correto. Ele sabe que está tudo bem, e nem é só por que ainda está meio bêbado.
- Eu não acho essa a melhor ideia que você teve hoje.
   Ela diz, de repente, a voz rígida.
- Eu acho que é. Eu acho que foi minha maior epifania dos últimos cinco anos, na verdade.
- Cala a boca.
   Ele ri e levanta a mão para fazer-lhe um carinho, mas ela se encolhe em resposta. Ele ergue uma sobrancelha.
- O que?
  Ela encolhe os ombros.
- Não estou acostumada com você suave assim.
   Ela murmura, a voz um fiapo. Ele sorri, meio débil.
- Eu tenho medo de quebrar você. Você é tão frágil.
   Ela até tenta, mas não consegue evitar o sorriso.
- Cala a boca. Você não pode ser meigo enquanto fala coisas assim pra mim.
- Por que não? Achei que você fosse toda sobre delicadezas e essas coisas.
- Não de você.
- Qual é o preconceito?
   Ela se cala por um momento inteiro, revira os olhos, pondera e pesa as palavras que nunca saem. Por fim, encolhe os ombros, vencida, como quem admite que não tem resposta.
- Soa errado, eu e você. E por favor, não me diga bobagens como é só um beijo ou algo assim. Eu jogo esse café na sua cara, hein?
   Ele ri.
- Eu já disse, eu não posso agir assim com você. Você é frágil e eu tenho pavor da ideia de te magoar.
   Ela morde o lábio.
- Por que agora?
- Por que sim.
- Não.
- Mas é.
- Não aceito essa resposta. A gente se conhece a tempo suficiente pra você me dizer algo melhor.
- O que você espera que eu diga? Eu não sei brincar de príncipe encantado e romance.
- É melhor você aprender. Ou você pode retirar tudo isso e esquecer essa bobagem. E eu nem estou brincando quando digo que essa é a melhor opção.
- Eu já disse, foi uma epifania.
- Não. Nada de amor a primeira vista depois de anos de eu e você quase todo dia. Não tem essa de, uma bela manhã, eu simplesmente te queria.
- Por que não?
- Por que seria?
- Por que não seria?
   Ele suspira, soando cansado, e o rosto está muito insuportavelmente próximo do dela para evitar beija-la. Custa tudo o que ele tem e toda a sobriedade que ainda guarda não aperta-la entre os braços ali mesmo. Ele se força a falar para fazer com que ela chegue mais perto. Pra fazer com que ela entenda. Com que queira. Por que, céus, ela também tem que querer.
- Por que você esteve perto demais a noite toda e correu atrás de mim na chuva. E foi molhar os pés na praia e aí subiu nas minhas costas na fila do bar.
- Acho que você se perdeu um pouco na linha do tempo das coisas.
   Ele a ignora.
- O que importa é que você veio parar na minha casa, depois de tudo, e ficou irresistível demais na minha camiseta preferida.
- Essa camisa é velha.
   Ela corrige, resoluta ao ignorar suas palavras – mesmo sabendo que não vai chegar muito longe com isso.
- Eu comprei em Nova York. – Ele explica, encolhendo os ombros ele mesmo.
- Se você quiser eu posso pegar outra lá dentro...
   Ela diz, fazendo uma débil tentativa de sair do pequeno cerco que ele armou para ela, ali na cozinha. Ele estende os braços ao seu redor, deixando bem claro que ela não vai a lugar algum.
- Você está linda. Pode ficar com ela até de manhã.
- Eu quero tomar café, sabe.
- E eu quero beijar você. Acho que todo mundo deve realizar seus desejos.
- Cala a boca.
   Ele sorri, perto demais, e ela não vê sentido em tentar se afastar, não quando sabe que ele não deixaria. Além do mais, ela não quer e não poderia.
- Seu desejo é uma ordem.
- Eu não desejei nada.
- Desejou sim. Você só não quer dar o braço a torcer.
- Faz muito mais senti– E ele a beija, e a beija, e a beija, e ela não se lembra do por que tentava ir embora, ou de como os braços dele foram parar ao redor de sua cintura. Ela se vê enredada, não mais que de repente, e se pega achando que aquilo não é tão ruim quando certamente vai parecer no dia seguinte.
- Então... você queria café?
   Mas a cabeça dela está rodando e ela não está ligando para nada – não agora, não ainda.
- Eu não tenho certeza.
   Ele ri.
- Posso resolver isso.
   E eles passam segundos e minutos valiosos entretidos demais um com o outro, e ela se encontra com braços cruzados ao redor do rosto familiar, o coração leve demais no peito, todas as certezas erradas correndo por debaixo da pele.
   E ela sabe que não é uma boa ideia, mas ainda não está se importando. Só por uma noite, só por aquela noite, ela pode fazer o que quiser.

08 março 2014

Pode ser Carnaval?

E eu me olho no espelho e a improbabilidade daquela situação me parece tanta que, por um segundo, eu duvido que esteja de fato acontecendo. Mas está lá, a mascara e o sorriso e o batom e as tiras de couro, e eu não consigo evitar pensar nele.
E aquela conversa boba no trem que subia a ladeira do cartão postal da minha cidade sorriso de repente parece fazer tanto sentido e eu me sinto tão carente sem você que eu me escondo atrás da máscara.
"Eu poderia ser o batman".
"Não, não".
"Batgirl, então. Eu poderia ser batgirl. Mas eu não gosto muito dela, pra ser sincera".
E ele para, e ele me analisa, e ele pensa por um segundo antes do sorriso tomar os lábios e os olhos me tomarem inteira e as palavras saírem e eu guardar, eu marcar no peito, eu imaginar a figura e as conotações e o elogio que vai por baixo de cada letra que ele pronuncia.

"Você poderia ser a mulher gato".

24 fevereiro 2014

Arrepio.


E suas mãos se encaixavam em cada canto de mim como se eu fosse dele, como se fosse pra ser. E eu podia sentir seu respirar nos dedos que acompanhavam minhas curvas, tomavam minha pele e escreviam nela canções sobre pedaços de mim que eu pouco visitava.
E quando estávamos juntos ele me abraçava apertado e roçava o nariz no meu pescoço, descobrindo com os lábios e olhos fechados meus contornos, meus cantinhos, meus segredos. E eu me acostumei a ter tuas mãos ao redor da minha cintura naquele meio abraço entre o possessivo e o carinhoso, me acostumei ao arrepio que corria espinha acima toda vez que sua língua desenhava círculos na minha pele exposta e você dizia, com aquele sorriso que escapava voz afora, que minha pele era salgada, apesar do tom de chocolate. Me acostumei ao som da tua voz sussurrando pedidos e bobagens ao pé do meu ouvido.
E hoje em dia quando me lembro de nós dois, fecho os olhos pra evitar os arrepios e a sensação familiar de você ao meu redor. É que me lembro das tuas histórias, do teu tom de voz, da dança que teus olhos faziam toda vez que você os voltava pra mim. E eu me lembro de cada pequeno morro e rua e vale e mar que vi ao teu lado, me lembro de cada esquina que percorremos, de cada canto que você me fez descobrir. Eu me lembro de tudo e a lembrança é tão real que parece de verdade, que parece que estamos de novo naquele momento em que suas mãos circundam minha cintura ou entrelaçam as minhas ou me rodopiam pra mais perto, pra mais um beijo, pra mais um momento que eu gravei na pele, nos lábios, no castanho chocolate que sou eu por inteiro.
E fica difícil te deixar escorrer pra longe quando meu próprio corpo te faz presente, te pede nos dedos, te sente nos abraços de outros corpos. E parece bobo tentar resistir às lembranças quando eu sei que eu e você ficamos ecoando pelas minhas costelas, pelas paredes, pelos cabelos, pelo toque suave e palavras singelas de um verão que não volta mais, nunca mais. E eu fico pra sempre só com aquela memória boa dos olhos e carinhos e do verão que me virou de ponta a cabeça com um único toque ou com mil deles. É que poucos braços se encaixaram tão bem nos meus abraços. Mas tudo bem, é adeus, é lembrança de toque, de pele, de você na minha cintura, nos meus braços e no meu abraçar. Tudo bem, é adeus, mas vou guardar estes detalhes, estes rabiscos suaves que consigo recordar só de fechar os olhos.
Então tudo bem, é adeus, mas vou te guardar.

22 janeiro 2014

Abraço

 

Sento-me entre suas pernas e sinto mais do que vejo seu olhar correr minha espinha, meus ângulos, meus cantinhos. Percebo antes de sentir teu toque em meu pescoço, meus braços em teus braços e minha cabeça tomba pra trás, em repouso absoluto, em paz com o conforto que só você me traz. Não lembro quando foi a ultima vez que estivemos tão próximos e silenciosos, não me lembro a ultima vez que te senti sem te olhar nos olhos e mergulhar em cores desiguais.
Não me lembro da ultima vez que não te amava.
Hoje em dia já não nos falamos, não nos vemos, não nos reservamos momentos. Hoje em dia tudo o que tenho são brechas, pequenos momentos em que teu corpo toca o chão, como hoje, e eu me sento ao seu redor, sentindo aquecer pedaços de mim que eu nem ao menos sabia que sentiam frio. Hoje em dia eu guardo meu amor pras terças-feiras, pras segundas a noite, pros improváveis dias de folga molhados a vinho tinto e música antiga em caixas de som que chiam. 
Hoje em dia nosso amor é vintage.
Sinto tua falta nos corredores de nós, sinto tua falta nas manhãs de quinta-feira e nos cafés de domingo a tarde. Sinto tua falta nas piadas, nos comerciais bobos e nas despedidas dos atores antigos que caem como moscas em dias que já não são para seus olhos. Sinto tua falta quando minha cabeça encaixa no travesseiro, sinto tua falta quando me encaixo no colchão de solteiro que, depois de anos, parece grande demais pra mim. 
Eu sinto tua falta a cada respirar.
Mas agora, hoje, nesse pequeno momento, nesse 1/4 de segundo em que minha cabeça repousa sobre seu ombro e nossas respirações sincronizam, eu não sinto nada além de paz. Sua falta é presença, nosso amor é ar, e meu peito guarda o cheiro de você nos pulmões até a próxima vez em que eu possa me encaixar da onde eu nunca queria sair. 
Até nosso próximo abraço.

07 janeiro 2014

4:53 am.


- Achei que eu tinha sido clara quando disse que era pra você não ligar mais.
- Você foi. Eu só não escutei. Você nunca esteve certa sobre nada mesmo.
E ela respira fundo e as palavras somem por um segundo e ela fecha os olhos, por que não quer se deixar levar mais uma vez.
- Por que você faz isso com a gente? Acabou, sabe. Segue em frente. Me esquece.
- Não dá. Você sabe que não dá. A gente viveu demais, você se gravou em mim. Não dá pra simplesmente deixar você pra trás a essa altura do campeonato.
 Ela deixa a cabeça pesar sobre o batente, os olhos fechados. Ela não quer escutar nada disso.
- Você foi embora. Você pegou suas coisas, você concordou com tudo isso.
- Você me mandou embora. Eu fui. Mas eu ia voltar, você sabia, por que eu sempre volto. Você é meu porto seguro, no final das contas.
- Não.
É tudo o que ela responde, voz fraca, olhos ainda fechados.
Ele sorri do outro lado da linha.
- Você me completa, menina. Você me entende, me abraça, me acolhe. Não é a mesma coisa se eu não estou com você a noite, se eu não acordo com você pela manhã. É por isso que, apesar de tudo, eu sempre acabo aqui de novo. Apesar das brigas, dos gritos, das promessas de nunca mais. Eu não sei mais viver sem você.
- Isso não é justo. Comigo, com você. Você nunca nos dá a chance de seguir em frente, de tentar um pouco. E se eu quiser isso? E se eu quiser conhecer outra pessoa, procurar outros corpos pra me aninhar? E se eu quiser alguém que me responda quando eu me chamo, que entenda minhas bobagens, que não me ache uma menina boba? Eu não tenho direito a isso? A uma outra chance?
Ele não responde. Ela respira o silêncio dele pela linha telefônica, o corpo se afastando da parede, se pondo de pé só pra enrolar o fio do telefone antigo entre os dedos.
- Eu amo você, menino. Mais do que eu gostaria e mais do que eu devia. Mas eu já não sei se vale a pena, você me ignora, você me esquece, você me machuca quando vai embora. Você me machuca quando diz que é melhor silenciar. Você sabe, eu vivo de palavra. E esse silêncio me mata, menino, esse silêncio acaba comigo.
- Eu só quero que você esteja feliz.
E aí ela não responde, por que ela não sabe bem se dá pra ser feliz sem ele, também.
Ele respira o silêncio dela por minutos imensuráveis, e ela sabe que ele vai ceder. Ele sempre cede aos desejos dela, no fim das contas.
- As vezes eu queria que você lutasse mais pela gente
Ela diz, a voz tão baixa e tão fraca que ele quase poderia jurar ter inventado.
- Me desculpa.
- Está tudo bem. Eu sempre soube como você era, como era seu silêncio, seu caminhar. E a boba fui eu de achar que era só por que você estava acostumado a ser sozinho. Eu estive errada desde o começo, achando que você devia mudar, que ia se abrir pra mim, me amar como eu esperava que fosse.
- Não fala assim, menina...
- É verdade. Eu devia ter acolhido você por inteiro, de uma vez. Mas eu sempre estive esperando que você batesse na minha porta no meio da noite, desesperado por um pouco mais de mim. Eu sempre acreditei que ia ser diferente depois que a gente se tocasse, que eu pudesse colocar meus braços ao redor de você. Eu achei que a gente ia ser pra sempre, ficar pra sempre, dividir pra sempre. Mas as pessoas não mudam assim, as pessoas encontram quem se encaixa com elas. E a gente não encaixou direito. Eu queria, você queria, mas não foi assim. Foi só no peito, no sentir. E eu sei que você tem essa mania de me colocar em primeiro lugar, que você tenta me amar, mas nossas palavras deixam sempre a gente na mão, com o coração partido. Fazem a gente acabar tendo conversas longas demais as quatro da manhã no telefone, pra não resolver nada. Por que não dá pra resolver.
- Não me faz ir embora de novo, menina. Eu só quero ficar com você.
É um pedido e ela o escuta suspirar. Ela aperta mais os olhos por que a dor é quase física e ela não quer chorar. Ela se vira de costas pro aparelho, como se pudesse fugir do som, mas o fone ainda está em seu ouvido, tão apertado contra os dedos que a pele até embranquece.
- Mas dói.
- E eu só quero que você esteja feliz. - Ele repete, e ela abre os olhos como quem se prepara pra encarar de frente um golpe forte demais. - Eu amo você, menina.
- Eu também.
Ela diz, tão baixo e tão ardente que ela tem medo dele insistir mais um pouco. Mas isso não é bem do feitio dele e o silêncio entre os dois se perdura por outra era, pendurado entre os dois telefones como uma sentença.
Quando finalmente encontram voz, voltam a falar quase ao mesmo tempo.
- Eu vou desligar.
- Eu estou no corredor.
E ela se põe de fé num salto, o fio enrolado braço adentro, toda elétrica de repente.
- Você o quê?
- Estou de pé no corredor, encarando nossa porta, sem coragem de ir embora. Eu te amo, eu te amo demais, e eu quero que você seja feliz mesmo que seja sem mim, mas eu não consigo sair desse corredor sabendo que você está aí bem do outro lado. Eu não consigo me afastar de você de novo. Já foi demais da ultima vez.
- Você não... Eu não posso abrir, menino. Se eu abrir, não vai ter fim.
- Você não sabe. Pode dar certo.
- Você conhece a gente. Não vai.
E ele hesita por um segundo, como quem pesa as opções. A ligação cai, e a estática na linha parece apunhalar sua audição sensível, e ela se sente incapaz de colocar novamente o telefone no gancho, lágrimas nos olhos, mundo fora do lugar até que ela ouve a batida familiar na porta da frente.
- Abre a porta, menina. Eu não quero ir a nenhum lugar.
E ela se confunde, dá um passo pro lado e tenta colocar o fone no gancho ao mesmo tempo, se enrolando em fios, rindo entre lágrimas, sem saber o que será de sua sanidade agora que ele está ali, tão perto, desafiando seu bom senso. Abre as portas aos tropeços, se joga nos braços familiares e se deixa perder na curva do pescoço que ela já acostumou chamar de lar.
E ela sabe que é um erro. Sabe que ele ainda vai ser silêncio, que ela ainda vai ser palavra, que eles ainda vão discutir por coisas bestas e que ele vai bater a porta ao invés de confrontá-la. Mas não tem jeito.
Ela não quer ir a lugar algum, também.
Ela já acostumou a chamá-lo de lar.

Layout por Thainá Caldas | No ar desde 2009 | Tecnologia do Blogger | All Rights Reserved ©