27 fevereiro 2012

Demolição atômica (de um nós).

Ela olhava resoluta o outro lado da sala, como se naquela parede, de repente, houvesse algo que valesse muito a pena se fixar. E ele sabia que era manha, birra, teimosia. Mas não podia culpá-la. Se a situação fosse outra, ele provavelmente também estaria inclinado a achar a parede muito interessante.
Suspirou.
- Você vai ter que encarar as coisas, hora ou outra. Me encarar.
- Vai embora.
- É sério. A gente vai ter que conversar.
- Pra quê? Você já deixou tudo bem claro. Pode partir. Não vou fazer cena.
- Essa já é uma cena.
   Ele murmurou, mais pra si que pra ela, e ela o ignorou. Perfume de rosas tomavam a sala, e ela procurou se concentrar no cheiro, na textura, na cor, no sabor. Qualquer coisa, menos nele.
- Eu tenho todo o tempo do mundo, você sabe.
- Na verdade, você não tem. Você tem lugares pra estar. Pessoas pra encontrar. Coisas pra fazer. 
  E a voz carregava desprezo tão grande que ele sentiu apertar o peito, e fechou os olhos por um segundo, exasperado, pra não se irritar. Respirou fundo, contou até a três e voltou a abrí-los, a expressão calma como  a alma. Mas a jovem ainda mirava a parede, como se o padrão do papel que a cobria de repente fosse o maior dos mistérios. E ele ainda não conseguia culpá-la.
- Achei que você fosse toda sobre dizer a verdade. Encarar as coisas como são. Essa bobeirada toda.
  Ela guardou silêncio ainda por um segundo inteiro, e então se virou, os olhos avermelhados, maníacos, feridos.  O respirar era marcado, pausado, controlado. Fúria era visível, dor era visível, traição era visível. No entanto, nenhuma lágrima escorria - ou escorreria. Ela era melhor do que se deixar fazer chorar por ele. Não se ele lhes dava  tão pouco valor que preferia partir. Se preferia outro alguém que não eles.
- O que você espera que eu diga pra você? Que te perdôo por preferir partir? Que podemos ser amigos? Que eu gostaria de conhecer a seja lá quem for que você diz amar agora? Ah, meu querido, não. Essa não sou eu, você sabe muito bem, essa de repente é a outra, a nova, a substituta. Você me conhece muito pouco se acha que vou sorrir e abrir a porta e te desejar felicidade. Te ofereço os fundos, a saída estratégica, sem dignidade, com os cachorros latindo e as lixeiras no  caminho. E fique feliz por não haver gritos e teatro e drama. Você sabe - ou devia saber - que eu sempre me entrego por inteiro, sempre sou por inteiro. Eu fui nós dois. E se agora é só você, não há lugar pra nada que era, nem na soleira da porta. Só o adeus seco, por que você sozinho nunca valeu minhas lágrimas.
- Eu imagino que você esteja com raiva agora, mas...
- Não. Eu não quero ouvir suas justificativas ou desculpas. Eu quero você fora, fora daqui, fora de mim, fora de nós. Não coleciono lembranças de quem não vale a pena. E você não vale. E essa sou eu encarando as coisas. Essa, meu querido, é a verdade que você tanto queria.
  E ele se calou por um segundo, surpreso, dividido, magoado, ferido. Abriu a boca, voltou a fechá-la, passou a mão no livro que trouxera e se dirigiu à porta, sem palavras, sentindo o ressentimento que ameaçava engolfá-lo se não deixasse aquela casa. A casa que era só dela agora.  E a culpa era dele, a escolha fora dele, e ele sabia, desde o primeiro momento em que os lábios tocaram os da outra, que não haveria volta. O coração da mulher que amava não suportava o peso das traições e a dor poderia quebrá-la. Ela o mandaria embora, ela o esqueceria, criaria sua verdade e se agarraria a ela e nunca o sofreria, por que não podia. Seria o seu fim, ele sabia. E por isso, não adiantava insistir.
  Abriu a porta e parou por um segundo na soleira, buscando uma ultima vez os olhos dela, buscando ela, que um dia fora sua e agora não era. E ela então, por um momento, o olhou o bem fundo e ele viu seus olhos esconderem todo tipo de segredos, segredos que ele sabia que não devia espiar. Não se ainda a amasse, e amava, mesmo sabendo que não mais a teria. E então, de repente, já não tinha certeza se queria mesmo a verdade, a que ela escondia, que mascarava, que torcia. Podia doer. Podia destruir. Não, não, é melhor não saber. É melhor não ouvir, não fazê-la dizer. É melhor mesmo fingir. E fugir. Aquela verdade não era pra sair. Alguns segredos não são mesmos pra sair do peito. Em voz alta, causam explosões.

Mas a destruição daquela sala era inevitável
(verdades demais já tinham sido vividas ali).

14 fevereiro 2012

Folha em Branco


O barco foi e eu fiquei, sem as canetas. E agora, ultimamente, todo dia, não tem mais palavra que diga o que eu carrego no peito. E eu já não sei se é por que eu não sinto nada, ou se as palavras já não bastam pra dizer o que sinto. A verdade é que as letras ficaram todas no meu passado e eu fiquei aqui de pé, no presente, seca, sem tinta, sem papel e sem um lápis que seja, chorando pra dentro dores que não doem mais, por que o mundo ficou tão em branco que nem sofrer direito eu consigo. A estática é tanta que nem palavra sai da boca. O som é mudo. E a apatia é tanta que não tem nem história pra inventar. E os livros vem com todas as folhas em branco e a minha mente não produz nada pra preencher. É uma pena. É uma dor. É um desespero. Mas é tudo o que restou de mim agora. 

09 fevereiro 2012

Matrimonial.

  Seu corpo era meu travesseiro e eu sorria enquanto mergulhava em seus olhos muito azuis. Você era mar. E meu queixo parecia ter encontrado o lugar exato pra repousar sobre minhas mãos em seu peito, e meus olhos se fechavam por segundos inteiros acompanhando os movimentos do seu respirar mais profundo. E o subir e descer de nós dois era o oceano e éramos eu e você e 1,2,3, inspira, expira, te respiro, te navego.
  E no segundo que levei para, de lado, ouvir melhor teu coração - que era meu, de tantas formas - senti sua voz surgindo em volta de mim, me preenchendo e me elevando e acelerando meu coração, como se meu corpo entendesse tudo de nós antes de mim (é um efeito que só você causa).
Me ergui em meus cotovelos para te ver melhor, te olhar direito, te absorver. Meu rosto era uma interrogação.
- O que você disse?
- Quero casar com você.
  Eu o encarei por um minuto quase inteiro, mente em branco. Tudo o que eu via era o azul-mar e o eu-e-ele eterno que era pra ser. E ele sorria enquanto o mundo girava rápido demais pra eu acompanhar. Fechei minha boca, que eu nem tinha reparado que abrira.
- Casar?
- É, casar. Eu e você, altar, anéis, pra sempre. Essas coisas.
- Mas... A gente não pode casar.
- Por que não?
- Somos muito novos. Só estamos juntos há uns poucos meses...
- Onze. - Ele me interrompeu. - É tempo mais que suficiente pra saber se eu quero te amar pra sempre. E eu quero.
   Pisquei, perplexa com o quanto ele era capaz de simplificar as coisas. E ele sempre parecia tão certo do que dizia que quase me convencia. Mas não dessa vez.
- Não é assim. Não é só isso.
- E o que mais? Isso é o importante.
- Pra começar, nós nunca dividimos o mesmo teto mais que algumas noites. E se nós descobrirmos que não aguentamos as manias um do outro? Ou que o encanto acaba se for demais?  E com tudo isso de morar em outra cidade, você ainda nem conheceu meus pais! E se minha mãe não gostar de você? Pior ainda, e se você não gostar da minha mãe? Ou entrar numa briga com minha irmã, ou não conseguir entender o quanto meu irmão é especial?
  "E se você me machucar?" ficou guardado, latejando, pulsando sob todos os outros medos. As outras desculpas.

- Você só está arrumando pretextos bobos, amor. Eu tenho certeza de que vou me dar bem com sua família, toda ela. E se não for assim, vamos lidar com isso. Juntos. Eu não vou te deixar. Eu não quero. Nunca mais.
- Mas...
- Você não precisa ter medo.
- Esse é um passo muito grande. É claro que eu tenho medo. Você está me aterrorizando.
- Você tem essa mania de fazer de tudo um problema, e um problema grande demais. As coisas não são assim.  Eu te amo, e esse é simplesmente o próximo passo natural.
- Não sei disso não.
- Não seja infantil.
 Eu fiz bico, quase ofendida por um instante. Depois deixei pra lá.
- É só que casar - pronunciei como se fosse horrível, e ele sorriu - pode deixar tudo confuso. Pode transformar tudo em um pesadelo. Quero dizer, basta olhar os outros casais do mundo. Todos eles falam tão mal desse tipo de comprometimento... Eu tenho medo de estragar o que a gente tem.
 "Porque o que a gente tem é tudo o que eu tenho". Guardei novamente, mas eu sabia que ele podia ler a verdade nos meus olhos. Ele sabia. Sempre soube. Sempre esteve ciente da minha intensidade, que afastou a tantos outros, e mesmo assim segurou minha mão e me abraçou no escuro e afastou meus medos. Ele foi intenso por mim.
  E agora me encarava tão suavemente, tão acolhedor, tão cheio de amor nos olhos azuis que pensei talvez ter entendido ao contrário. Quem sabe ele não era o intenso de nós dois. Ele sorriu, como se lesse minha mente, e meu peito acelerou. Onze meses, e as mesmas reações adolescentes do primeiro dia.
- Não estou dizendo que não vai haver nuvens - talvez até uma ou duas tempestades, de tempos em tempos. Elas vão acontecer e nós vamos ter que lidar com elas. Tampouco posso dizer que as coisas não vão mudar entre nós. Quero dizer, poder chamar você de minha esposa? Vai me mudar pra sempre. Mas vai ser o mesmo amor entre a gente, então, vai dar tudo certo.
- Mas...
 Comecei, e ele colocou os dedos suavemente sobre meus lábios, calando meu argumento.
- Eu sei que a ideia é um pouco assustadora. É normal recear. Mas o que tem entre a gente é amor e é de verdade. E por mais que o mundo tente dizer o contrário, o amor é realmente muito simples. É fácil como respirar. É a gente que complica.
Engoli minhas palavras, uma a uma, enquanto ele continuava a falar. A voz era doce, era paraíso, era lar. Amor, sob qualquer perspectiva. E eu só queria amor mesmo. Só queria ele. Então, por que não?
- Sim.
 Eu disse simplesmente, interrompendo-o. Ele piscou.
- Sim?
- Sim. Eu quero me casar com você, pra sempre com você, amor com você. Sim, sim, sim.
 E ele pareceu levar um minuto inteiro para absorver minhas palavras. E então me puxou, colando os lábios nos meus enquanto sorria um sorriso que me fez ver, mais que perceber, que ele estava mesmo certo. Amar era muito simples.


-
Teoricamente, isso era pra participar da edição dessa semana do Bloinquês. Mas além de tudo o que eu normalmente sou, eu sou também lesada, e escrevi um conto no tema da Edição Cartas. Bem, bem, perdi a oportunidade. Mas taí (eu fiz tudo pra você gostar de mim). 

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