14 março 2014

Epifania


- Eu quero você.
   Ela levanta os olhos da caneca entre as mãos e o encara, sem palavras e sem expressão. O espaço entre eles já não é tão grande, apenas alguns passos, e ele não se acovarda. Ela tampouco se afasta, e ele não evita cruzar o pouco de cozinha que resta e se aproximar dela de modo definitivo.
   Ela ainda não disse palavra, mas perto dela nunca pareceu tão correto. Ele sabe que está tudo bem, e nem é só por que ainda está meio bêbado.
- Eu não acho essa a melhor ideia que você teve hoje.
   Ela diz, de repente, a voz rígida.
- Eu acho que é. Eu acho que foi minha maior epifania dos últimos cinco anos, na verdade.
- Cala a boca.
   Ele ri e levanta a mão para fazer-lhe um carinho, mas ela se encolhe em resposta. Ele ergue uma sobrancelha.
- O que?
  Ela encolhe os ombros.
- Não estou acostumada com você suave assim.
   Ela murmura, a voz um fiapo. Ele sorri, meio débil.
- Eu tenho medo de quebrar você. Você é tão frágil.
   Ela até tenta, mas não consegue evitar o sorriso.
- Cala a boca. Você não pode ser meigo enquanto fala coisas assim pra mim.
- Por que não? Achei que você fosse toda sobre delicadezas e essas coisas.
- Não de você.
- Qual é o preconceito?
   Ela se cala por um momento inteiro, revira os olhos, pondera e pesa as palavras que nunca saem. Por fim, encolhe os ombros, vencida, como quem admite que não tem resposta.
- Soa errado, eu e você. E por favor, não me diga bobagens como é só um beijo ou algo assim. Eu jogo esse café na sua cara, hein?
   Ele ri.
- Eu já disse, eu não posso agir assim com você. Você é frágil e eu tenho pavor da ideia de te magoar.
   Ela morde o lábio.
- Por que agora?
- Por que sim.
- Não.
- Mas é.
- Não aceito essa resposta. A gente se conhece a tempo suficiente pra você me dizer algo melhor.
- O que você espera que eu diga? Eu não sei brincar de príncipe encantado e romance.
- É melhor você aprender. Ou você pode retirar tudo isso e esquecer essa bobagem. E eu nem estou brincando quando digo que essa é a melhor opção.
- Eu já disse, foi uma epifania.
- Não. Nada de amor a primeira vista depois de anos de eu e você quase todo dia. Não tem essa de, uma bela manhã, eu simplesmente te queria.
- Por que não?
- Por que seria?
- Por que não seria?
   Ele suspira, soando cansado, e o rosto está muito insuportavelmente próximo do dela para evitar beija-la. Custa tudo o que ele tem e toda a sobriedade que ainda guarda não aperta-la entre os braços ali mesmo. Ele se força a falar para fazer com que ela chegue mais perto. Pra fazer com que ela entenda. Com que queira. Por que, céus, ela também tem que querer.
- Por que você esteve perto demais a noite toda e correu atrás de mim na chuva. E foi molhar os pés na praia e aí subiu nas minhas costas na fila do bar.
- Acho que você se perdeu um pouco na linha do tempo das coisas.
   Ele a ignora.
- O que importa é que você veio parar na minha casa, depois de tudo, e ficou irresistível demais na minha camiseta preferida.
- Essa camisa é velha.
   Ela corrige, resoluta ao ignorar suas palavras – mesmo sabendo que não vai chegar muito longe com isso.
- Eu comprei em Nova York. – Ele explica, encolhendo os ombros ele mesmo.
- Se você quiser eu posso pegar outra lá dentro...
   Ela diz, fazendo uma débil tentativa de sair do pequeno cerco que ele armou para ela, ali na cozinha. Ele estende os braços ao seu redor, deixando bem claro que ela não vai a lugar algum.
- Você está linda. Pode ficar com ela até de manhã.
- Eu quero tomar café, sabe.
- E eu quero beijar você. Acho que todo mundo deve realizar seus desejos.
- Cala a boca.
   Ele sorri, perto demais, e ela não vê sentido em tentar se afastar, não quando sabe que ele não deixaria. Além do mais, ela não quer e não poderia.
- Seu desejo é uma ordem.
- Eu não desejei nada.
- Desejou sim. Você só não quer dar o braço a torcer.
- Faz muito mais senti– E ele a beija, e a beija, e a beija, e ela não se lembra do por que tentava ir embora, ou de como os braços dele foram parar ao redor de sua cintura. Ela se vê enredada, não mais que de repente, e se pega achando que aquilo não é tão ruim quando certamente vai parecer no dia seguinte.
- Então... você queria café?
   Mas a cabeça dela está rodando e ela não está ligando para nada – não agora, não ainda.
- Eu não tenho certeza.
   Ele ri.
- Posso resolver isso.
   E eles passam segundos e minutos valiosos entretidos demais um com o outro, e ela se encontra com braços cruzados ao redor do rosto familiar, o coração leve demais no peito, todas as certezas erradas correndo por debaixo da pele.
   E ela sabe que não é uma boa ideia, mas ainda não está se importando. Só por uma noite, só por aquela noite, ela pode fazer o que quiser.

08 março 2014

Pode ser Carnaval?

E eu me olho no espelho e a improbabilidade daquela situação me parece tanta que, por um segundo, eu duvido que esteja de fato acontecendo. Mas está lá, a mascara e o sorriso e o batom e as tiras de couro, e eu não consigo evitar pensar nele.
E aquela conversa boba no trem que subia a ladeira do cartão postal da minha cidade sorriso de repente parece fazer tanto sentido e eu me sinto tão carente sem você que eu me escondo atrás da máscara.
"Eu poderia ser o batman".
"Não, não".
"Batgirl, então. Eu poderia ser batgirl. Mas eu não gosto muito dela, pra ser sincera".
E ele para, e ele me analisa, e ele pensa por um segundo antes do sorriso tomar os lábios e os olhos me tomarem inteira e as palavras saírem e eu guardar, eu marcar no peito, eu imaginar a figura e as conotações e o elogio que vai por baixo de cada letra que ele pronuncia.

"Você poderia ser a mulher gato".


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