31 outubro 2012
Psicótica (Cheiro de Pólvora)
Quando acordei ela já estava lá, de pé, os olhos fixos nos meus, e eu soube mesmo antes que ela dissesse palavra que estava tudo acabado. E eu não gelei ou me aterrorizei ou gritei ou exibi no meu azul-escuro o medo que eu sabia que ela queria que eu demonstrasse. Culpe o sono, se quiser, mas eu fui bravo e destemido, e encarei o castanho-escuro mais cheio de segredos que eu jamais veria. Que eu jamais veria de novo. E eu sabia que era a hora e ela não precisava mesmo fazer o discurso que pretendia, por que nós dois sabíamos bem que não adiantava protestar. Não pra ela, não pra mim.
Mas ela fez, e ela falou, e eu queria voltar a dormir ou mandá-la embora ou acabar com tudo, mas fiquei em silêncio, deixando que ela jorrasse fora as palavras que guardava, apenas por que bem, ia acabar mesmo, então era melhor pra nós dois que ela estivesse com seus pratos limpos pra porta do céu. Eu me deitei novamente, meu azul encarando o azul do nosso teto de nuvens, e eu senti que ela finalmente se aproximava da cama, senti que se aproximava de mim, e senti antes de ver sua presença bem diante de tudo que era eu, pernas abertas sobre as minhas pernas, o corpo na posição que me dominaria para sempre, sem me dar chance alguma de protestar. Como se ela não me tivesse dominado desde sempre, mente e coração e atos e braços e palavras e tudo em mim. Sempre foi assim e ela nunca me deixava tentar fazer diferente. Como se eu fosse. Como se eu pudesse. Como se eu, alguma vez, tivesse tido alguma chance.
- Você é patético.
Foi tudo o que ela disse antes de mirar em mim os seus olhos cheios do seu mais apaixonado desprezo. Senti minha língua coçar, mas segurei meu verbo, minha própria paixão, meu despeito. Eu não ia discutir com ela. Eu não ia colocá-la no seu lugar. Embora eu certamente pudesse. Embora eu provavelmente devesse. Mas, para quê?
- Você também é.
Foi tudo o que consegui responder (e provei seu ponto, é claro. Eu sempre acabava descobrindo como ela estava certa e eu, errado).
Ela encolheu os ombros e, antes de dar o tiro que tirou minha vida, me olhou bem fundo nos olhos e disse, com aquela voz que me assombra até hoje quando sou eu quem assombro as paredes brancas da sala em que morávamos:
- Fica quietinho que vai ser rápido. Bum, barulho, cheiro de pólvora. Você nem vai ver acontecer. Mas vai doer, é claro que vai doer. Mas não tem problema. Algumas coisas são mesmo feitas para doer. Coisas tipo eu e você. Coisas tipo eu e você pra sempre.
17 outubro 2012
Estilhaçada.
Alguma coisa com azul e preto tem se instalado em mim e me tirado o ar e me roubado lágrimas e me feito fingir sem parar que eu quero sorrir. Mas tá tudo um cu, isso sim, e agora eu me escondo em livros que faz melhor pra mim (por que eu também quero ficar dobrada entre páginas).
"Passei minha vida dobrada entre paginas de livros"
MAFI, Tahereh. Estilhaça-me.
04 outubro 2012
Um dia frio.
O casaco dele era grande, mas confortável, e eu me sentia satisfeita agora que aquecida. Ele me sorria meio de lado, meio contrariado, mas não parecia de todo chateado. Eu me fazia de faceira e guardava silêncio, sorriso no rosto, por que eu me sentia no clima correto para (me) apaixonar e a falta de palavras, por enquanto, nos caía bem. E além do mais, eu gostava do som nossos passos na rua de pedra. Eventualmente, no entanto, ele falou.
- Confortável?
- Terrivelmente. - Ele revirou os olhos. - Você, no entanto, não parece muito. Está com frio?
- Não... - Ele disse, e soou tão natural que eu não saberia dizer se havia caído no jogo. - Mas mesmo que estivesse, não faria diferença. Meu casaco foi roubado de mim por uma garota bonita.
- Que absurdo! - Ele ergueu uma sobrancelha achando graça -Se você quiser que eu resolva isso, basta me apontar a atrevida. Pego seu casaco de volta.
- Ah, é?
- Claro. Mas infelizmente, pra você, eu não vou devolver. Vou ficar com ele, por que estou sempre com frio e posso usar um casaco a mais.
- Você ainda está com frio?
E sua voz estava em algum lugar entre a surpresa e a preocupação. Eu sorri.
- Não, não de verdade.
- Ah, que bom.
Eu ri e me virei, me deixando caminhar de costas para a rua de modo a observá-lo melhor.
- Não tem graça provocar você se tudo o que você vai estar é preocupado.
- Perdão.
Ele disse, mas a voz era todo humor e o rosto exibia um sorriso torto de quem se divertia às minhas custas. Revirei os olhos.
- Agora você está definitivamente se divertindo de mais.
E, ao ouvir isso, ele gargalhou e o som inédito pareceu ecoar pelo meu peito adentro. Aturdida, me deixei voltar a um caminhar normal ao lado do meu recém-conquistado salvador. Ele não pareceu notar que acabara de arruinar meu sistema nervoso.
- Talvez eu deva simplesmente ir na frente e te dar uma lição.
Eu disse finalmente. Ele não pareceu preocupado (afinal, não era como se ele não pudesse me alcançar se quisesse, com suas pernas longas e tudo).
- O plano agora é fugir com o meu casaco, então?
- Ainda estou decidindo isso.
- É claro que sim.
Mas não parecia convencido.
- De qualquer modo, - ele começou, cruzando o braço com o meu e ficando terrivelmente próximo demais - até onde vamos andar? Não que eu não esteja gostando da companhia, mas eu apreciaria saber o ponto final...
- Bem, você só vai comigo até o shopping. Eu vou andar até a rodoviária.
- Para?
- Pegar um ônibus, que ideia.
- Não... - Ele começou, mas eu (obviamente) havia entendido.
- Eu vou voltar para casa hoje. Duas horas e mais um pouco e eu estarei lá em segurança.
- Longe.
- É a vida.
- É frio lá?
- Terrivelmente.
- Então por que você veio assim?
Ele perguntou, indicando com a cabeça o meu adorável vestido de verão.
- Estava quente pela manhã, ok?
Ele revirou os olhos.
- Descuidada.
- Não reclame. Não fosse eu ter esquecido o casaco, você jamais estaria em minha agradável companhia esta noite.
- É verdade. Mas eu poderia ser um maníaco e ter atacado você quando surgiu do nada e me pediu o casaco. Na verdade, na verdade, acho que só emprestei por que você me pegou de surpresa; quero dizer, por que mais eu emprestaria minhas roupas a uma desconhecida?
- Por que eu sou adorável, é claro. - Os olhos dele negaram. - Por que eu estava roxa de frio, então.
A expressão dele suavizou.
- É, talvez. Você estava mesmo tremendo e tudo, afinal.
- Viu? Adorável.
Ele revirou os olhos mais uma vez.
- Sério, da próxima vez não faça algo assim. Pode ser perigoso.
- Pode deixar, mãe. - Ele sorriu. - E de qualquer modo, eu não pretendo esquecer meu casaco de novo, então não se preocupe. Não vou infligir minha loucura e companhia a outros estranhos por aí.
- Este é o menor dos problemas.
Ele resmungou enquanto um daqueles ventos frios que correm na orla tentava arrancar meu rosto de mim. Me encolhi (o que o trouxe para ainda mais perto, considerando que ainda tínhamos nossos braços entrelaçados);
- Não acredito que você ainda está com frio!
- É o vento!
Eu repliquei, mas minha voz saiu muito mais resmungona do que devia, e eu fechei a cara.
- Isso não pode ser normal, sério.
Ele disse, só por dizer, e eu fiquei em silêncio. Sem palavras, nossos passos aceleraram e logo já podíamos ver o prédio que era nosso destino. Faltava pouco agora, e eu já preocupava minha mente tentando descobrir como não congelar depois de devolver o casaco do meu mais novo desconhecido favorito.
Estava tão distraída que quase não reparei quando alcançamos a entrada. Nossos passos pararam e ele me segurou pela mão, como se receasse que eu continuasse andando caso ele soltasse. Em defesa dele, a verdade é que eu provavelmente iria (o trajeto já me era tão familiar que eu o fazia sem prestar muita atenção; meus pés sabiam bem o caminho de casa e seguiam sem minha intervenção direta).
- Ei, ei.
Ele chamou, não parecendo certo de que eu o escutava.
- Hey você.
- Shopping.
Ele disse simplesmente, apontando o prédio com a cabeça. Ainda segurava minhas mãos, mas não parecia particularmente ciente disso (ou disposto a soltá-las, já que estamos no assunto).
Seus olhos estavam fixos nos meus, uma curiosidade atraente brilhando neles. Ele me pareceu intenso. Minha cabeça tombou para o lado, numa tentativa de absorvê-lo melhor.
- Você está esquisito.
Ele encolheu os ombros. Arqueando uma sobrancelha, eu comecei a me desvencilhar dele e de seu casaco (era difícil pra mim, ele estava terrivelmente aconchegante). Ele me parou, no entanto, mãos suaves, mas olhos cheios de segundas intenções. Eu não entendi.
- O quê?
- Fique com ele.
- Como?
- Fique com ele. Você está com frio, eu não. E, pelo que você me disse, na sua casa faz ainda mais frio, certo?
- É, mas mesmo assim... Eu não posso ficar com seu casaco. Não, não. Eu posso comprar alguma coisa pra me aquecer aí no shopping e tudo, veja. Foi um ponto estrategicamente escolhido.
E ele me olhou com olhos que claramente não estavam satisfeitos. E então encolheu os ombros como quem desiste, e tirou de um dos bolsos uma caneta e um pequeno pedaço de papel. Anotou alguma coisa que, ao me entregar, identifiquei como seu nome e telefone.
- Me ligue, sim? Pra dizer que chegou aquecida e tudo mais.
- Ok. Eu acho.
Ele me analisou com olhos críticos.
- Talvez seja melhor você me dar o seu número.
- Ah... tudo bem.
Hesitei apenas um momento antes de começara a vasculhar minha bolsa à procura do meu celular - eu não sabia meu número - mas foi o suficiente para que ele percebesse. Sei disso por que quando levantei a cabeça, aparelho na mão, ele me encarava com os olhos mais reprovadores que eu veria em algum tempo.
- O que foi agora?
- Você não quer me dar seu número.
E, embora ele não estivesse exatamente me acusando, meu reflexo foi me defender.
- Não, não é isso! É que eu não sei meu número de cabeça. Preciso olhar na agenda.
- Não duvido que precise. Mas não acho que queria me dizer os números.
- Não seja bobo, anote aí...
- Não, não. Façamos assim: você fica com o meu número e o meu casaco.
- De novo isso? Eu já disse, vou comprar um. Obrigada, mesmo, mas não preciso.
- Desnecessário. Completamente desnecessário. Você pode ficar com esse. Faça assim: me devolva depois.
- Como assim depois?
E aí ele sorriu e eu entendi - por que puxa, que sorriso. Mas ele explicou, apenas para que não restassem dúvidas.
- Você vai levar o casaco por que aí vai ser obrigada a me ligar e encontrar comigo para devolvê-lo.
- Ah, é mesmo? E o que você faria se eu o levasse e simplesmente não devolvesse?
- Você não faria isso. É adorável, lembra?
E eu não consegui evitar o sorriso que me escapou dos lábios.
- Você é um sacana.
E ele sorriu um sorriso conquistador e insinuante, um sorriso que, eu tinha certeza, ele sabia perfeitamente que esfrangalhava os nervos de mocinhas como eu.
- Não. Só tenho um pensamento estratégico.
- Dá no mesmo.
Eu disse, e ele encolheu os ombros como quem não se incomoda.
- Bem, então a gente se vê?
E o sorriso convencido que ele me deu então deveria ser proibido por lei - ou pelo ministério da saúde - por apresentar riscos imensuráveis à sanidade e ao bem-estar dos transeuntes. Fiquei em silêncio (mas apenas por que não tinha certeza que eu conseguiria formar as palavras)
- Sábado, talvez?
Fechei novamente o casaco emprestado, minha expressão sóbria e composta (eu esperava).
- Pra que se dar ao trabalho de me deixar o casaco, se você já está marcando o encontro?
E em seus olhos aquela preocupação gentil que ele exibiu quando me emprestou o casaco no primeiro contato brilhou novamente. Era doce.
- Bem, você está com frio. E embora não esteja mais tremendo, você ainda está alguma coisa de pálida.
Eu sorri, tocada por sua preocupação. E então ele completou:
- E assim você não pode faltar.
- Lá vai você estragando tudo de novo.
Ele riu e voltou a pegar minha mão por apenas um momentos, enquanto se inclinava e depositava um beijo em minha bochecha sem nem mesmo - e acredite se quiser - tentar avançar pelos meus lábios (não que eu o teria deixado. Provavelmente não).
- Se cuida, viu? E até sábado.
E, com um ultimo sorriso (sério, devia ser proibido) e um leve empurrão na direção das portas ("E sai logo do frio!"), ele me deu as costas e voltou a caminhar pela direção da qual viemos. Imaginei que fosse entrar em alguma das ruas que saiam da orla bairro adentro, mas não prestei muita atenção, admito.
Fiquei ali, apatetada por um instante inteiro, sorrindo como uma boba por divisar suas costas lá longe, na calçada. E eu me peguei sorrindo, completamente aquecida, não só pelo casaco, mas pelo sorriso malandro que me dera no ultimo segundo, pelos lábios suaves que tocaram minha pele, pelas mãos gentis nas minhas e, principalmente, pelos olhos, ah, aqueles olhos, tão sinceramente preocupados que derreteram metade de mim.
- Sábado, então...
Murmurei, apenas pra mim, pra fazer parecer um pouco mais real (não deu certo). E eu não conseguia deixar de sorrir. É que aquele simpático estranho, naquele dia frio, me aquecera com seus sorrisos (e que sorrisos). Mas então, com um vento frio que causou um terrível arrepio que me correu espinha acima, o encanto se partiu (mas só um pouco), eu recobrei a sanidade, sacudi a cabeça e entrei no shopping.
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