(ou Não é desculpa pra você se aproximar)
A porta
rangeu e o vento gelado a tomou por inteiro enquanto corria os quatro cantos do
quarto, mas ela tremia por motivos que iam bem além da brisa de inverno. O
corpo pequeno tremia por que sentia os passos no chão do corredor, sentia o corpo
estranho próximo, sentia o lento aproximar de alguém que ela não queria ver
agora. Alguém que ela não queria ver nunca mais. Ninguém nunca mais.
- O que você
está fazendo aqui?
Ela se
escutou perguntar em voz rouca, furiosa, destemida e afiada como uma navalha,
pronta para o próximo golpe.
Ela não
queria companhia mais do que queria piedade e, com ela, os dois sempre
caminhavam juntos. E como ela odiava aqueles olhos cheios de falsas promessas e
fingida preocupação. Como ela odiava as palavras vazias e o consolo de toque
singelo, superficial, que em nada curava o coração. Como ela odiava que a
tratassem como boneca frágil, sem conserto. Como ela odiava saber que eles
estavam todos certos e ela mesma ser digna da pena, ser frágil boneca quebrada
sem conserto. Como ela odiava se olhar no espelho e não ver reflexo. Já fazia
tempo que ela não era nem eco, nem sombra. Ela não era mais nada.
- Eu achei
que você precisava de mim.
Ele
responde, a voz seca, partida, hesitante.
Ele caminha
alguns passos quarto adentro, braços esticados, pronto para o toque que ele
sabe melhor do que esperar que ela permita que ele faça. Ela nunca deixa. Mas
ele sempre tenta.
- Eu não
preciso de você. Eu não preciso de ninguém.
Ele dá mais
um passo adiante, sem se deixar abater pelas palavras ríspidas. Ele é forte,
bem mais forte que ela, e ele sabe melhor que se deixar parar pela vontade
dela. Ele sabe mais, ele acredita. Ele sempre soube, por que ela nunca soube
nada.
- Mas você
está partida. Está ferida. Está quebrada.
E isso é
óbvio no olhar que ela carrega, no corpo que ela abandona, no passo que ela dá
pra trás. Ela está partida e o sangue poderia jorrar por todos os poros, mas
não o faz - só dor pulsa pra fora dela, e dor ele não pode ver. E, embora ele
possa dizer a qualquer um que ela sofre, seus olhos se estreitam, como quem
desconfia. Ele nunca soube por que ela sofre tanto, e ele nunca conseguiu tocar
o coração de seus problemas. Ele nunca entendeu. Ela não sabe nem ao menos se
ele tenta. Ele também não saberia dizer o quanto se esforça. Se é que se
esforça. Se é que se importa.
- É claro
que estou. - E a voz dela não quebra, não falha, não hesita. - Estou partida,
estou ferida, estou quebrada. Vazei por tudo quanto foi brecha, e agora não sou
mais nada. E dói que é uma desgraça. Mas é problema meu.
Ela é firme
enquanto se define, ela é firme enquanto avalia o dano. Mas a lembrança do
espelho vazio nunca deixou sua mente e ela sabe melhor do que achar que a vida
tem cura, que tem cola, que tem jeito. Ela já se desfez e ninguém se importa se
a dor que ela carrega vem sem história pra contar. Só o que importa é que ela
sente, e ela sente tanto que escorre pelos olhos, que dobra as pernas à força,
que cai num canto escuro. Só o que importa é o quarto vazio feito o reflexo, só
o que importa é que ela não é ninguém. Ela não é ninguém e está doendo.
Os olhos
dele também estão vazios.
Ela sabe que
ele não a vê. Não, não de verdade; ele só vê a sombra da boneca que ela um dia
foi. Ele só vê o que não tem conserto. E ela não se importa. Ela já passou por
isso antes. Ela já encarou mais de um par de olhos que a olharam de cima, sem
saber o que fazer com ela, sem saber se havia algo a fazer. E ela não liga. Ela
não liga que ninguém ligue. Ela deixou de se importar faz tempo. Ela só não
deixou de doer.