- Você calou minhas letras.
Eu digo sem tom, minhas mãos segurando o rosto, apatia fluindo de mim.
- Desculpa?
É tudo o que ele me responde, os olhos verdes brilhando lá do outro lado da cozinha onde ele está sentado com sua caneca de café entre as mãos. De algum modo, ele não me parece muito como café. Sente mais como água, como líquido fresco, como algo natural. Posso senti-lo fluir ao meu redor e fecho meus olhos, indignada.
- Você não deveria calar minhas palavras. Você deveria inspirar. Olhos, pele, mãos nas minhas. Você devia ser a inspiração em carne e osso.
Ele segura o riso e sorri, quase sem graça, quase sem jeito. É adorável demais para que eu não aprecie. Dou um passo em sua direção.
- Por que você faz isso?
- Não tô fazendo nada!
Ele diz e eu reviro meus olhos, como se estivesse exausta, exaurida, farta. E estou. Estou cansada de encarar minhas folhas por horas, as páginas em branco me julgando pela minha ausência, minha falta de sentimento que pinga em letra.
E a culpa é toda dele e desse rosto muito bonito para querer estar assim tão perto do meu.
- Vem cá.
Ele pede, voz doce, sedução pingando de cada sílaba. Quero mordê-lo. Quero abraçá-lo. Quero espancá-lo por calar minha mente de forma tão efetiva. Ele é perfeito demais.
- Não. - Eu digo, mas dou alguns passos em sua direção assim mesmo. Parece automático. - Eu quero que você vá embora. - Eu digo, parando meus pés quando já estou ao alcance da mesa em que ele está sentado.
Ele levanta uma sobrancelha, como quem duvida.
- É mesmo? Achei que eu fosse sua... inspiração.
- Você devia ser. Mas não é. Na verdade, a culpa é toda sua que eu já não consigo desenhar uma única palavra no papel. Você é meu silêncio.
- Cala a boca. - Ele diz, como sempre faz quando não consegue encontrar a expressão que precisa. Ele ainda não está a vontade com minha língua, minhas palavras, meu idioma, embora o meu e o dele sejam assim tão parecidos. Gosto de vê-lo titubear nas palavras, no entanto. Faz com que pareça vulnerável. Faz com que ele pareça ainda mais adorável.
Ele encontra meu olhar observando-o atentamente, cuidadosamente, e também revira os olhos. Pousa a caneca na mesa, ainda parecendo indignado que eu o queira mandar embora. Pra ser sincera, parece loucura pra mim também.
- Eu nem sabia que você escrevia. Sobre o que você escreve, de toda forma?
- Romance. Bobagens. Sentimentos. Escapes.
- Combina com você.
Ele admite, estendendo a mão em vão para tocar a minha. Ainda estamos longe.
- Não faz diferença. Você está calando tudo.
Ele então suspira e inclina a cabeça e, de repente, toda sua desconcertante perfeição parece gritar com meu sistema nervoso. Sei que preciso desviar os olhos, mas não consigo me forçar. Ele sorri então, e metade de mim derrete e minha expressão torna-se quase dolorida.
- Você meio que é bom demais. Não tem muito o que escrever sobre, não tem muito mais o que imaginar.
Eu confesso, e ele parece se irritar novamente.
- Cala a boca. - Ele repete, se levantando num movimento fluído - como água, como líquido - e se aproxima de mim. Suas mãos envolvem as minhas antes que eu tenha a chance de sequer pensar em evitá-las. - Você não precisa realmente escrever essas coisas. Eu tô aqui. Você pode viver essas coisas.
Estou tendo dificuldade em me concentrar em nada que não sejam os lábios rosados perigosamente perto demais dos meus. Ele então me aproxima ainda mais, dobrando meus braços ao seu redor, fazendo com que minhas mãos, nossas mãos, parem exatamente acima de onde suas costas mudam de nome. E ele é perfeito entre meus braços, ele é perfeito a minha frente. Posso quase sentir cada um dos seus músculos contra a camiseta. Meus olhos se fecham e eu escondo uma pequena prece.
Eu o odeio.
Mas não de verdade.
- Mas escrever faz parte de mim.
Eu digo, minha voz pequena contra seu rosto, nossas testas num esforço tímido para permanecerem unidas. Ele morde meu queixo, e posso escutar a risada baixinha penetrando meus poros.
- Eu também.
- Não é justo.
Eu digo, e meus braços o abraçam com mais vontade, e eu me deixo repousar em seu corpo. Não tento manter meus pensamentos coerentes, por que assim tão de perto não é mesmo possível. Ele é demais pra minha sanidade, já tão escassa.
- Desculpa. - Ele pede, e soa sincero. Eu deixo sua voz soprar meus ouvidos, e ele desenha padrões nas minhas costas, distraído. - Mas eu não vou embora. Você é muito linda. Muito minha pra deixar partir.
- Você é bom demais pra mim. - Admito, culpada, e sinto seu rosto movendo-se em negativa contra minha pele. - E estar com você é tão pacífico que eu não consigo desenhar um nada do ao redor. E isso é um pouco perturbador, está fora demais dos meus padrões pra ser verdade. É como se eu estivesse subindo esta ladeira desde sempre, e de repente já não tem pra onde ir e eu não sei lidar com isso direito. Não sei lidar com você.
Sinto-o suspirar contra minha pele, e me arrepio. O aperto mais um pouco contra mim, só por que é confortável. Ele se aventura a morder meu pescoço, e eu me encolho. Ele deposita um beijo, entendendo meus medos quase melhor que eu - mas como é possível em tão pouco tempo, jamais saberei.
- Pensa assim: eu e você somos estamos lá em cima no que você chama romance. E já está bom, não precisa de letra nem nada. Não precisa pintar, não precisa escrever. Tira uma foto, se quiser guardar. Mas ainda acho melhor só eu e você, só viver devagar, enrolar minha mão na sua, sua cintura na minha, seu calor no meu. E não é ruim. Juro que não é ruim.
Eu fecho meus olhos e me descolo um pouco só pra ficar de frente, pra sentir o respirar e tentar ter certeza, absorver a sua certeza, tentar acolher no meu coração a ideia de deixar de lado, depois de tanto tempo, as minhas canetas e lápis e folhas. Sente certo, mas parece tão errado. Estou assustada com a ideia de deixar as faces que desenho apenas para observar a sua. Tocar a sua. Beijar a sua. Estou apavorada com a ideia de que, no alto da montanha russa de nós dois, eu esteja no pico e vá cair sem conseguir alcançar minhas letras.
Suspiro.
- Que se dane. É bom, nós dois. Vou viver isso, um pouco. Vou reservar minhas canetas um pouco. - Ele ri, e um tímido "é isso aí, cala a boca" escapa de seus lábios. Eu também dou risada, incapaz de me conter.
- Não se preocupa tanto. Prometo que não vou deixar você cair daqui de cima. A gente pode ficar no alto das suas expectativas e dos seus romances e tudo.
- "Uma montanha russa que só vai pra cima". - eu cito meu livro favorito, e você sorri, mas não sei se reconhece o autor. Não sei se faz diferença agora. Não sei de nada quando estamos tão perto. - Você não devia mesmo fazer esse tipo de promessa.
- Cala a boca. Não tem nenhum problema se eu estiver disposto a cumprir.