24 dezembro 2012

Vou Ler Histórias (Parte I)


Era Natal e as ruas estavam lotadas e ele de saco cheio. O calor, o sol escaldante, a camiseta colada nas costas e a calçada quente na frente da vitrine – tudo parecia um bom motivo para explodir em reclamações constantes sobre o quanto o mundo era injusto por fazer dele, justo ele, o homem para o serviço ingrato de bancar o duende feliz no natal. E em pensar que tudo o que ele queria era um pouco de paz, um pouco de silêncio no seu escritoriozinho no estoque escuro da loja e, com sorte, um bom bônus de natal no salário para comprar um presente adequado para o sobrinho que ele não via há meses. Mas tudo dera errado, a loja superlotara e ele fora requisitado, necessário, indispensável para fazer a coisa funcionar no andar de cima, na adorável ruazinha comercial de luxo onde as dondocas de carteiras cheias e tempo livre faziam suas compras e batiam suas pernas com as típicas expressões cabisbaixas e infelizes da busca pelo presente perfeito. Oh, que vida terrível devia ser aquela das viciadas em comprar com o cartão ilimitado do papai!
Ele, que nem ao menos era vendedor, já passara de sua décima terceira cliente do dia quando uma loira coberta de pacotes de presentes entrou pela porta sacudindo as vidraças, procurando um lugar para se apoiar e ameaçando, de modo geral, o bem estar e a segurança de fosse quem fosse que estivesse a sua frente. Estando mais perto da porta, foi ele o escolhido para impedir que ela caísse, derrubasse seus pacotes e ainda derrubasse os outros clientes inocentes. As mãos hábeis de equilibrar as caixas que viviam ameaçando cair sob sua cabeça no estoque rapidamente pararam a pilha instável de presentes e circundaram uma formosa cintura, dando firmeza ao corpo cambaleante da desastrada cliente. Ela agradeceu um tanto sem graça, um tanto sem jeito, mas com um sorriso tão grande que pareceu acender a loja, iluminando tudo ao redor com um adorável tom de “estou-feliz-porque-é-natal”. Ele piscou, perdido por um único instante numa felicidade que não era dele.
- Posso ajudar?
- Oui. Eu preciso comprar um presente para minha afilhada. Ela tem seis anos, mas eu nunca a vi pessoalmente antes. Eu simplesmente não tenho ideia do que comprar. Estou tão indecisa! Eu não tenho muito contato com crianças, então não sei o que dar a ela e me disseram que por aqui esse é realmente o lugar para encontrar um presente diferente e interessante, mesmo sendo para uma criança de seis anos...
Em pensamento, ele revirou os olhos.
- Uma boneca, talvez?
Ela sorriu, mas os olhos mostravam bem que ela não era fã da ideia. E aqueles olhos eram, ele reparou, de um azul escuro tão intenso que ele duvidava que houvesse a possibilidade deles não mostrarem qualquer coisa. Eram feitos de mar em noite escura e compunham com maestria o rosto bem moldado da jovem mulher que estava parada a sua frente com os braços cheios de sacolas de compras.
- Une poupée... – Ela hesitou. - Não pense que não passou pela minha cabeça, num ato máximo da desistência. Mas eu não posso fazer tal coisa. Apesar de não conhecer bem a pequena Isabelle, sei perfeitamente que ela é uma dessas crianças geniais cujas mentes funcionam rápido e bem demais para corpinhos tão pequenos. Não, não posso insultar sua inteligência desse jeito dando a ela uma boneca. Agora imagine que tipo de imagem ela teria de mim para sempre! Acabando de chegar de Paris, a madrinha ingrata na qual ela nunca pôs os olhos traz pra ela uma boneca de plástico, com escova de cabelo e tudo, e ela, ó grande criatura, só queria um bom livro com capa de tecido e uma incrível história com um dragão, uma princesa e um conflito ético e moral acerca da servidão ao rei.  Non, non et non! Não posso decepcioná-la desse jeito, eu jamais me perdoaria.
Ele olhou para ela por um minuto inteiro, boca aberta, espanto nos olhos castanhos. Como ela conseguira pronunciar tantas palavras em tão pouco tempo?
- Não acho que crianças de seis anos estejam assim tão preocupadas com conflitos morais e éticos, sejam elas gênias ou não.
- Mas ela poderia estar, n’est-ce pas? Quero dizer, o que eu sei sobre ela? De quem foi a ideia estupida de me colocar como madrinha dessa criança, de todo modo? O que eu sei sobre crianças? Ah, pelos céus, Anita e essas suas ideias. Deus a tenha, é claro, mas sua cabeça não funcionava certinho, já se vê...
O vendedor riu.
- Não se desespere. É mesmo difícil dar presentes a crianças. Veja eu mesmo, não estou ainda muito certo do que dar ao meu sobrinho, que também tem seis anos e é esperto feito um diabinho.
- Nenhuma ideia?
- Nenhuma. E minha irmã não quer ajudar, por que ela diz que é minha culpa por ter sido um tio ausente por todo o ultimo ano. Como se fosse minha culpa, agora veja você, que absurdo.
- Não é? Carregamos nossas culpas, é claro, mas isso não quer dizer que não mereçamos um pouquinho de ajuda. Rafael nem ao menos quis me dizer o que ela pediu a ele! Pelos céus, é de pensar que eu os ignorei completamente pelos últimos sete anos... O que não é totalmente verdade. Eu troquei cartas com Anita durante todo este tempo...
- Bem, eu vi o pequeno Daniel muitas vezes ao longo dos anos. Mas depois que me mudei ficou mesmo difícil. Ela diz que ele sente saudades de mim. Mal sabe ela que eu também morro de saudades do pirralho...
Ele sacudiu a cabeça, completamente consciente de que estava falando demais, e ela suspirou, parecendo completamente desesperançada.
- Je suis un monstre, não, um monstro... Você está aí todo pra baixo de saudades do seu sobrinho, e eu aqui, com inveja. Não me entenda mal, moço... É só que... eu não tenho esse vinculo forte com Isabelle. Christ, ela nem me conhece de verdade! Aposto que ela vai me detestar. E eu ainda vou piorar tudo com um presente meia boca que não vai casar com ela de maneira nenhuma.
- Não seja assim dramática, por favor. Tenho certeza de que vamos encontrar um bom presente aqui. E não me chame de moço. Eu sou Daniel, vendedor por um dia, a seu dispor em tudo o que eu puder ajudar.
Ela deu uma risadinha sem humor.          
- Clara.
- Bem, Clara, vamos resolver o seu problema. Já que você não quer dar bonecas e não tem muitas ideias, é melhor que não trabalhemos com a criança então, já que você não a conhece bem. (“Mais para nem um pouco”, a loira resmungou). Pensemos em você. O que você gostaria de dar de presente de natal para a filha da sua amiga Anita? Melhor ainda, o que você daria de presente para Anita, quando criança?
- Ah, fácil. Veja, Anita era uma criança feita de graça. Ela linda, todos diziam. Nossas fotos de infância pareciam catálogos. E apesar de todos dizerem que devíamos passar nosso tempo entre as flores no jardim de vovó, quand j’étais petit, quando nós eramos pequeninas, nós duas passávamos as tardes dentro da biblioteca de vovô Orlandi, usando pilhas de livros como escadas para alcançar as prateleiras mais altas e os livros com as capas grossas de couro envelhecido, certas de que aqueles contavam as melhores histórias sobre princesas. Princesas irmãs. Princesas que se amavam e tinham mil aventuras com bosques encantados e fadas da floresta. Mas por algum motivo, os livros de capas de couro envelhecidos eram sempre sobre botânica ou outra bobagem do tipo. Os para crianças estavam sempre perto do chão, e eram sempre novos e decepcionantes, com gravuras coloridas da Disney ou o que fosse. Ah, arruinava completamente nossos planos. Mas eram dias divertidos...
- Um livro, parece, então. – Ele interrompeu o devaneio da cliente. - Vê, você nem ao menos estava tão longe disso no seu plano inicial dos conflitos morais e éticos..
E ele deu uma risadinha, como quem não ainda não acredita.
- Mas como eu vou saber se essa é a melhor opção? Quero dizer, as crianças não preferem brinquedos? Ou animais? Será que eu não devia dar a ela algo como um filhote de coelho?
- Bem, não acho essa a melhor opção. Quero dizer, pode ser um problema para os pais dela...
- É claro. É claro. Stupidité. Quero dizer, como se Rafael já não tivesse o suficiente para se preocupar agora...
E aí ela murchou por um segundo, a expressão de repente tão triste que ele se sentiu compelido a voltar o assunto para o famigerado presente. Tudo o que ele não queria era ver lágrima e tristeza naqueles olhos tão azuis, tão vivos, tão cheios de esperança e mil estrelas cadentes. Aqueles olhos todos feitos de natal.
- Livro, correto?
- É...
- Eu sei apenas o lugar perfeito para você encontrar seu presente.
Ele disse e, largando as sacolas dela perto do balcão, a guiou pela mão até os fundos da moderna loja de presentes criativos. 

(continua)

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