Era Natal e as ruas estavam
lotadas e ele de saco cheio. O calor, o sol escaldante, a camiseta
colada nas costas e a calçada quente na frente da vitrine – tudo parecia um bom
motivo para explodir em reclamações constantes sobre o quanto o mundo era
injusto por fazer dele, justo ele, o homem para o serviço ingrato de bancar o
duende feliz no natal. E em pensar que tudo o que ele queria era um pouco de
paz, um pouco de silêncio no seu escritoriozinho no estoque escuro da loja e,
com sorte, um bom bônus de natal no salário para comprar um presente adequado para
o sobrinho que ele não via há meses. Mas tudo dera errado, a loja superlotara e
ele fora requisitado, necessário, indispensável para fazer a coisa funcionar no
andar de cima, na adorável ruazinha comercial de luxo onde as dondocas de
carteiras cheias e tempo livre faziam suas compras e batiam suas pernas com as
típicas expressões cabisbaixas e infelizes da busca pelo presente perfeito. Oh,
que vida terrível devia ser aquela das viciadas em comprar com o cartão
ilimitado do papai!
Ele, que nem ao menos era
vendedor, já passara de sua décima terceira cliente do dia quando uma loira
coberta de pacotes de presentes entrou pela porta sacudindo as vidraças,
procurando um lugar para se apoiar e ameaçando, de modo geral, o bem estar e a
segurança de fosse quem fosse que estivesse a sua frente. Estando mais perto da
porta, foi ele o escolhido para impedir que ela caísse, derrubasse seus pacotes
e ainda derrubasse os outros clientes inocentes. As mãos hábeis de equilibrar
as caixas que viviam ameaçando cair sob sua cabeça no estoque rapidamente
pararam a pilha instável de presentes e circundaram uma formosa cintura, dando
firmeza ao corpo cambaleante da desastrada cliente. Ela agradeceu um tanto sem
graça, um tanto sem jeito, mas com um sorriso tão grande que pareceu acender a
loja, iluminando tudo ao redor com um adorável tom de
“estou-feliz-porque-é-natal”. Ele piscou, perdido por um único instante numa
felicidade que não era dele.
- Posso ajudar?
- Oui. Eu preciso comprar um presente para minha afilhada. Ela tem seis
anos, mas eu nunca a vi pessoalmente antes. Eu simplesmente não tenho ideia do
que comprar. Estou tão indecisa! Eu não tenho muito contato com crianças, então
não sei o que dar a ela e me disseram que por aqui esse é realmente o lugar
para encontrar um presente diferente e interessante, mesmo sendo para uma
criança de seis anos...
Em pensamento, ele revirou
os olhos.
- Uma boneca, talvez?
Ela sorriu, mas os olhos
mostravam bem que ela não era fã da ideia. E aqueles olhos eram, ele reparou, de
um azul escuro tão intenso que ele duvidava que houvesse a possibilidade deles
não mostrarem qualquer coisa. Eram feitos de mar em noite escura e compunham
com maestria o rosto bem moldado da jovem mulher que estava parada a sua frente
com os braços cheios de sacolas de compras.
- Une poupée... – Ela hesitou. - Não pense que não passou pela minha
cabeça, num ato máximo da desistência. Mas eu não posso fazer tal coisa. Apesar
de não conhecer bem a pequena Isabelle, sei perfeitamente que ela é uma dessas
crianças geniais cujas mentes funcionam rápido e bem demais para corpinhos tão
pequenos. Não, não posso insultar sua inteligência desse jeito dando a ela uma
boneca. Agora imagine que tipo de imagem ela teria de mim para sempre! Acabando
de chegar de Paris, a madrinha ingrata na qual ela nunca pôs os olhos traz pra
ela uma boneca de plástico, com escova de cabelo e tudo, e ela, ó grande
criatura, só queria um bom livro com capa de tecido e uma incrível história com
um dragão, uma princesa e um conflito ético e moral acerca da servidão ao
rei. Non,
non et non! Não posso decepcioná-la desse jeito, eu jamais me perdoaria.
Ele olhou para ela por um
minuto inteiro, boca aberta, espanto nos olhos castanhos. Como ela conseguira
pronunciar tantas palavras em tão pouco tempo?
- Não acho que crianças de
seis anos estejam assim tão preocupadas com conflitos morais e éticos, sejam
elas gênias ou não.
- Mas ela poderia estar, n’est-ce pas? Quero dizer, o que eu sei
sobre ela? De quem foi a ideia estupida de me colocar como madrinha dessa
criança, de todo modo? O que eu sei sobre crianças? Ah, pelos céus, Anita e
essas suas ideias. Deus a tenha, é claro, mas sua cabeça não funcionava
certinho, já se vê...
O vendedor riu.
- Não se desespere. É mesmo
difícil dar presentes a crianças. Veja eu mesmo, não estou ainda muito certo do
que dar ao meu sobrinho, que também tem seis anos e é esperto feito um
diabinho.
- Nenhuma ideia?
- Nenhuma. E minha irmã não
quer ajudar, por que ela diz que é minha culpa por ter sido um tio ausente por
todo o ultimo ano. Como se fosse minha culpa, agora veja você, que absurdo.
- Não é? Carregamos nossas
culpas, é claro, mas isso não quer dizer que não mereçamos um pouquinho de
ajuda. Rafael nem ao menos quis me dizer o que ela pediu a ele! Pelos céus, é
de pensar que eu os ignorei completamente pelos últimos sete anos... O que não
é totalmente verdade. Eu troquei cartas com Anita durante todo este tempo...
- Bem, eu vi o pequeno Daniel
muitas vezes ao longo dos anos. Mas depois que me mudei ficou mesmo difícil.
Ela diz que ele sente saudades de mim. Mal sabe ela que eu também morro de
saudades do pirralho...
Ele sacudiu a cabeça,
completamente consciente de que estava falando demais, e ela suspirou,
parecendo completamente desesperançada.
- Je suis un monstre, não, um monstro... Você está aí todo pra baixo de saudades do
seu sobrinho, e eu aqui, com inveja. Não me entenda mal, moço... É só que... eu
não tenho esse vinculo forte com Isabelle. Christ,
ela nem me conhece de verdade! Aposto que ela vai me detestar. E eu ainda vou piorar
tudo com um presente meia boca que não vai casar com ela de maneira nenhuma.
- Não seja assim dramática,
por favor. Tenho certeza de que vamos encontrar um bom presente aqui. E não me
chame de moço. Eu sou Daniel, vendedor por um dia, a seu dispor em tudo o que
eu puder ajudar.
Ela
deu uma risadinha sem humor.
- Clara.
- Bem, Clara, vamos resolver
o seu problema. Já que você não quer dar bonecas e não tem muitas ideias, é
melhor que não trabalhemos com a criança então, já que você não a conhece bem. (“Mais
para nem um pouco”, a loira resmungou). Pensemos em você. O que você gostaria
de dar de presente de natal para a filha da sua amiga Anita? Melhor ainda, o
que você daria de presente para Anita, quando criança?
- Ah, fácil. Veja, Anita era
uma criança feita de graça. Ela linda, todos diziam. Nossas fotos de infância
pareciam catálogos. E apesar de todos dizerem que devíamos passar nosso tempo
entre as flores no jardim de vovó, quand
j’étais petit, quando nós eramos pequeninas, nós duas passávamos as tardes dentro da biblioteca de vovô
Orlandi, usando pilhas de livros como escadas para alcançar as prateleiras mais
altas e os livros com as capas grossas de couro envelhecido, certas de que aqueles
contavam as melhores histórias sobre princesas. Princesas irmãs. Princesas que
se amavam e tinham mil aventuras com bosques encantados e fadas da floresta.
Mas por algum motivo, os livros de capas de couro envelhecidos eram sempre
sobre botânica ou outra bobagem do tipo. Os para crianças estavam sempre perto
do chão, e eram sempre novos e decepcionantes, com gravuras coloridas da Disney
ou o que fosse. Ah, arruinava completamente nossos planos. Mas eram dias
divertidos...
- Um livro, parece, então. –
Ele interrompeu o devaneio da cliente. - Vê, você nem ao menos estava tão longe
disso no seu plano inicial dos conflitos morais e éticos..
E ele deu uma risadinha,
como quem não ainda não acredita.
- Mas como eu vou saber se
essa é a melhor opção? Quero dizer, as crianças não preferem brinquedos? Ou
animais? Será que eu não devia dar a ela algo como um filhote de coelho?
- Bem, não acho essa a
melhor opção. Quero dizer, pode ser um problema para os pais dela...
- É claro. É claro. Stupidité. Quero dizer, como se Rafael
já não tivesse o suficiente para se preocupar agora...
E aí ela murchou por um
segundo, a expressão de repente tão triste que ele se sentiu compelido a voltar
o assunto para o famigerado presente. Tudo o que ele não queria era ver lágrima
e tristeza naqueles olhos tão azuis, tão vivos, tão cheios de esperança e mil
estrelas cadentes. Aqueles olhos todos feitos de natal.
- Livro, correto?
- É...
- Eu sei apenas o lugar
perfeito para você encontrar seu presente.
Ele disse e, largando as
sacolas dela perto do balcão, a guiou pela mão até os fundos da moderna loja de
presentes criativos.
(continua)