Ali atrás, no entanto, a
iluminação cuidadosa fazia a pequena livraria anexa parecer saída de um filme
antigo. Os olhos dela brilharam e o rosto imediatamente recuperou a alegria
“então-é-natal” que ele absorvera com um baque quando ela caminhou pela loja no
primeiro minuto, soterrada por seus outros presentes.
- Isso é...
- Incrível, não é? Foi por
isso que eu vim trabalhar aqui, em primeiro lugar. Essa biblioteca, essa
livraria, parecia saída de um sonho para o meu eu bibliotecário recém-formado.
Ela percorreu as prateleiras
com os olhos, um dedo cuidadoso correndo perto das lombadas antigas, um suspiro
arrebatado cortando o peito.
- Eles são... fabuleux. Tão antigos e bem cuidados.
Transpiram histórias mesmo fechados.
- E eles tem sua história.
Cada um deles. Alguns poucos são edições mais recentes, mas a maioria foi
restaurada quando chegou. Eu cuido deles lá em baixo, os deixo perfeitos de
novo. Os deixo prontos para novos olhos. Novas viagens.
- São lindos. - Ela
suspirou. – Você fez um trabalho magnifique.
– Ele sorriu, agradecido. – Foi por isso que você disse que era funcionário por
um dia? Você é restaurador na verdade?
- Sim. Estou só ajudando por
hoje. Nossa gerente nos garantiu que o sufoco é só por uns dias, e que ela vai
chamar novos vendedores até o fim de semana.
- Bem, você está fazendo um
bom trabalho me ajudando a escolher meu presente.
- Eu acho que eu falei um
pouco demais, na verdade...
Ela riu.
- Bem, me fez sentir a
vontade. E me trouxe nesse lugar incrível. Eu definitivamente já sei o que
quero dar. Agora só me resta saber qual livro escolher...
- Ah, as coisas aqui nessa
biblioteca não são tão simples. O livro que você precisa te encontra, se
encaixa entre seus braços, faz seu coração palpitar. É mais do que escolher um
título ou uma história, ou mesmo um autor. Aqui o livro é quem escolhe a pessoa
para quem as páginas vão abrir o mundo novo.
E ao ouvir tal promessa ela
sorriu ainda maior, os olhos cheios de uma esperança renovada e um acreditar
tão profundo que ele não pode evitar sorrir também. Era natal, e a loja estava
cheia e as ruas insuportavelmente quentes, mas aquela mulher tagarela dos olhos
de estrelas cadentes estava ali, bem a sua frente, o coração batendo fora do
peito por que estava cercada de livros, dos melhores livros, os mais cheios de
histórias, histórias que iam muito além das letras impressas nas páginas. Ele
de repente se sentia o próprio Papai Noel, e aquela adorável mulher a sua
frente era a criança para quem ele se revelara depois de natais e mais natais de
espera com o biscoito sob a árvore. Era revigorante.
- Eu não sei nem ao menos
por onde começar...
Ela confessou, e ele novamente
a tomou pela mão e a guiou pelas estantes, parando bem em frente a uma de
aspecto encorajador, com livros grossos e capas de um verde intenso.
- Bem, eu só posso dar o
empurrão inicial. Posso tirar suas duvidas também, se quiser saber mais sobre algum,
mas a viagem pelas prateleiras é por sua conta. Você tem que encontrar o
caminho.
Ela fechou os olhos por um
minuto, sentindo o cheiro de livro antigo penetrar seus pulmões, o coração e os
pés tão leves que ela não se surpreenderia se começasse a voar ali mesmo.
- Eu quero um livro que
inspire sonhos. Um que a faça viver o melhor da imaginação. Um que a faça
visitar os melhores mundos, enfrentar as maiores batalhas, voar com dragões e
fadas e brincar com príncipes e princesas. Eu quero um com cheiro e gosto de
infância de verdade.
- Não era um desses que
vocês procuravam na biblioteca do seu avô?
Ela abriu os olhos para
encará-lo então, surpresa por que ele prestara atenção em seu infinito
falatório.
- Oui. Pareceu adequado. Eu viajei tantos mundos com Anita por causa
dos livros...
- Sim. Sim, é uma ótima
ideia.
Ele sorriu gentilmente, e em
resposta os olhos azuis derreteram-se em sonhos que ele queria que a levassem
tão longe quanto ela quisesse.
- Bem, vou deixar você
procurar...
- Não, por favor. Fica um
pouco. Eu posso ficar indecisa.
Ele encolheu os ombros, um
sorriso sem graça no rosto.
- No que eu puder ajudar.
Ela pareceu levar eras.
Caminhou pelos corredores curtos e estreitos com as mãos correndo as
prateleiras, nunca encostando ou tirando livro algum do lugar. A concentração
era evidente, o sorriso largo e a felicidade tão transparente que ele nem ao
menos conseguiu ficar irritado por ter que esperar por ela por tanto tempo. E
então ela finalmente voltou das prateleiras finais, o sorriso tão amplo feito o
mundo, nas mãos três grossos volumes coloridos e os olhos feitos de fogos de
artificio. Ele jamais vira alguém tão contente com um presente de natal que nem
ao menos era para si mesmo.
- Indecisa?
Ele perguntou, a voz cheia
de graça e satisfação por vê-la tão exuberante com os livros, seus livros, os
livros com os quais ele tomava tanto cuidado, tinha tanto carinho e tantos
segredos.
- Na verdade não. Eu
simplesmente preciso dos três.
- Você os conhece?
- Bem, eu passava minhas
tardes na biblioteca.
- É verdade. Caixa, então?
- S’il vous plait.
Ele registrou os livros,
rindo para si mesmo ao reparar quais eram, e começou a embalá-los para
presente, colando neles etiquetas para que ela os identificasse. Empurrou-os
por cima do balcão, e ela ainda mantinha no rosto aquele sorriso
incompreensível que o fazia desejar por mais natais, ao invés de apenas
sobreviver ao que se aproximava.
- Isso é tudo, então?
- Sim, sim. Só mais uma
coisa. Você tem uma caneta para me emprestar?
Ele entregou a ela a caneta
que levava no bolso do uniforme, e ela se inclinou para escrever os nomes nas
etiquetas. Ele pode apenas divisar a caligrafia fina e cheia de voltas
escrevendo Pour Le Petit Isabelle antes
que os cabelos caíssem como uma cortina por cima do pacote, cobrindo boa parte
da visão que ele tinha dela. Era um triste empecilho.
Segundos depois ela jogava a
cortina loira para trás, colocando imediatamente depois dois pacotes dentro da
bolsa que ele lhe entregara, e estendendo a ele o terceiro, o sorriso agora
acanhado, colorindo o rosto bonito.
- Pela ajuda.
Ela disse, e ele sentiu o
rosto esquentar, como um garoto do colegial.
- Não, por favor. É meu
trabalho...
- Eu insisto.
- Mas eu não posso...
- É um presente.
- Não é correto eu aceitar
de...
- Eu não perguntei se é
correto. Estou te dando um presente de natal.
- Mas...
- Il est inutile d’résister. Eu nunca aceito não como resposta. De
ninguém. Nem mesmo de bibliotecários bonitos em lojas de presente moderninhas.
Ele ficou em silêncio,
abobalhado, admirado, completamente encantado com os olhos de noite sem nuvens
que ela exibia enquanto estendia resoluta o pacote com a fita verde que ele
acabara de colar. Uma coletânea clássica de As Crônicas de Nárnia repousava
dentro dele. Ele sacudiu a cabeça, vencido, e pegou o pacote das mãos de dedos
finos e frágeis.
- Esse era um dos meus favoritos
quando eu era criança. Foi um daqueles através dos quais eu viajei mundos, vivi
aventuras, me tornei princesa e fiz mil mágicas. Esse foi particularmente
especial, por que meu irmão leu pra nós, eu e Anita, quando nós ainda não
conseguíamos ler assim tantas palavras. Então esse presente não é apenas para o
Daniel você. É para você e para o seu sobrinho, Le Petit Daniel. Leia com ele. Fique com ele. Sorria com ele. Batalhe
com ele pelas terras mágicas de Nárnia, voe através do guarda-roupa, mude o
mundo que é seu até os limites da terra do lampião. Faça isso por ele, por mim
e, principalmente, por vocês. Pode fazer isso?
Ele simplesmente concordou
com a cabeça, ainda surpreso, ainda sem fala, ainda sem conseguir tirar os
olhos do azul-noite-inesquecível que ela exibia nos próprios olhos. Ela ainda
segurava o pacote, mesmo que ele já o tivesse aceitado e tivesse as mãos sobre
as dela na embalagem bem feita.
- Quando acabar – Ela
acrescentou, o sorriso mais fascinante agora, menos inocente, mas tão
encantador e singelo quanto antes – você liga pro numero no adesivo e me conta
tudo. Num café, talvez. Ou num jantar. Num barco, numa roda gigante, num parque
cheio de castelos antigos. Você que sabe. Mas eu digo logo, eu gosto de
aventuras. Viajei muitos mundos, sabe.
Ele se viu concordando.
- Temos um trato, então.
Ela disse, simplesmente.
Mirou a pilha de presentes já comprados que esperava por ela em cima de um
pequeno pufe e suspirou, já sabendo bem que teria que performar algum tipo de
malabarismo para conseguir leva-los até em casa. Cansava-se só de imaginar.
- Você quer que que eu te
ajude a colocar essas coisas num taxi?
- Não precisa. – Ela
respondeu por reflexo. E então hesitou um segundo, recontando as sacolas. – Na
verdade, preciso sim.
- Tem um ponto bem ali na
esquina. Vá até lá, eu olho seus pacotes.
Ela sorriu agradecida, e em
poucos minutos fora e voltara, o carro amarelo buzinando do lado de fora
sinalizando que estava pronto para recebê-la.
- Então, até depois do
natal. – Ela disse, pegando a sacola com os dois livros, dando um jeito de
equilibrar a nova bolsa com todas as outras que ela trazia quando entrou na
loja.
- Deixe-me levar estas, sim?
Ele pediu, a voz toda humor,
retirando algumas das sacolas de suas mãos. Ela revirou os olhos enquanto davam
os poucos passos que separavam a loja do taxi do lado de fora. Ele colocou as
sacolas no banco de trás, e ela largou as poucas que trazia também antes de se
virar para ele e sorrir o sorriso mais bonito de agradecimento que ele veria em
anos.
- Muito obrigada.
- Daniel, funcionário por um
dia, para tudo em que eu puder ajudar.
- Bem, me ajudou bastante. –
Ela sorriu e se esticou por alguns breves segundos em que os lábios rosados
roçaram o rosto do bibliotecário.
- Volte sempre.
Ele disse, a voz firme, embora o coração
vacilasse.
- Certamente. Muitos livros
naquelas prateleiras estão simplesmente gritando o meu nome... – Ele sorriu. –
Bem, boa sorte com o seu petit Daniel
e até depois do natal. Quero escutar apenas as historias mais incríveis, certo?
– Ele concordou com a cabeça. - Só... mantenha o sorriso no rosto, tudo bem? É
natal. Tous les espoirs sont permis. E
ela, a esperança, está em todos os lugares nesses dias. Não existe época melhor
para se sorrir. E ainda tem o detalhe de que você fica bem mais bonito com um
sorriso...
Foi o que ela ainda tagarelava
enquanto entrava no carro, e ele não pode evitar se deixar sorrir, sacudir a
cabeça e achar uma certa graça naquela situação impossível, naquela mulher
adorável, naquela aventura, naquela oportunidade, nessas coisas que só podiam
mesmo acontecer no natal.
Já havia dado as costas para
a rua, de volta a loja, quando ouviu a voz cortar o vento. Os olhos buscaram o
taxi já longe na rua, e ele ainda podia vê-la sorrir.
- Joyeux Nöel, Daniel!
Ele não pode evitar. Não
conseguiu. Era natal, as ruas estavam cheias, o sol estava quente e naquela
mesma manhã seu mau humor não podia nem ao menos ser mesurado; mas um único
sorriso, alguns livros, uma aventura em Nárnia, uma pá de sonhos e algumas
palavras em francês e tudo mudara, tudo melhorara, tudo era natal. Então,
quando ele a viu se afastando, o sorriso visível mesmo a tantos metros de
distancia rua abaixo, ele nem ao menos tentou se conter. Gritou de volta:
- Feliz Natal, Clara!
Importante:
Eu não falo francês. Eu nem ao menos arranho francês. Mas a história pedia pelo francês, por que ela deriva de Bela e a Fera, de Petit Prince e de um monte de outras coisas francesas que fazem suspirar. Então, recorri ao bom e velho dicionário bilíngue Michaelis (sai daqui google translate, não confio em você) para escrever todas as palavrinhas e expressões que aparecem aqui. Enfim, se existirem aí quaisquer erros, por favor, me avise para eu corrigir!