Despertei em silêncio, olhos fechados, na esperança de que, se prolongasse aqueles segundos antes da consciência, eu pudesse ter você por mais um momento. Mas a zoeira dos pássaros na janela não me deixava fugir, e eu abri os olhos a contragosto, dando um bom dia abafado pro teto branco do meu quarto recém pintado. Corri os olhos em volta só pelo hábito, pois eu já sabia muito bem que você já partira. Você sempre partia pela manhã. E eu sempre acordava sozinha. Nada, a não ser o que eu carregava na pele, poderia provar que você estivera ali. Até minhas paredes se faziam de cegas e negavam sua presença de quando em quando. E então eu me desesperava, preocupada com a possibilidade de apenas imaginá-lo, e entrava em discussões ferrenhas comigo mesma, pra me convencer que você só partia. Era você que era covarde e não eu que era maluca. Eu detestava você nessas horas.
Não havia nada de incomum no nosso relacionamento. Nada que obrigasse você a fugir pela manhã. Ainda sim, você partia, eu ficava, xícara de café na mão, cabelo bagunçado, os pijamas esquecidos em algum lugar no chão do quarto, junto aos sapatos que nunca ficavam guardados por tempo suficiente. É que eu, como uma boba, sempre me arrumava pra você.
Suspirei, resignada, pois já sabia há muito que você não estava pronto para nada além disso. Eu via o amor nos seus olhos, nos seus atos e no seu toque cálido, incontido, mas suas palavras jamais eram tão explicitas. No entanto, eu podia ver tudo o que saía do seu peito fluindo por baixo das palavras, procurando lugar no meu coração, tentando se enfiar pelas brechas das janelas e portinholas que eu trancava, pra só te deixar entrar quando você me chamasse á porta da frente, decentemente. E eu tentava amar só metade de você até lá. Tentava e falhava, é claro. Eu nunca conseguiria ser assim tão determinada a ponto de perder um pouco de você só pra não me machucar.
Mas naquela manhã, naquele 27, eu alimentara uma esperança tola de que você ficaria. Era meu dia, afinal de contas, e eu queria um pouco mais de você do que sempre tinha, eu te queria inteiro por pelo menos um dia, com fita de presente e tudo, com recado e cartão comemorativo. Naquele dia eu queria ser importante o suficiente pra fazer você ficar. Mas não era. Era 27, é verdade, mas isso não fazia especial. Pelo menos, não aos seus olhos. Me senti encher de lágrimas, mas meus olhos não derramaram nenhuma. Ao invés disso, enfileiraram palavras, milhões de letras tomando forma na minha mente, transformando meu lamento em gracioso poema. Eu amava tanto você, que até minha dor tomava forma de amor. Virava palavra e pingava no papel.
Procurei um bloco, tentando guardá-las, por que guardava tudo o que vinha de você. O palpável era pouco, é verdade, mas os sentimentos eram tantos, que meus registros tomavam páginas e páginas, livros inteiros falando de você e eu em códigos, em sinais, em desenhos e trechos de canções. Você às vezes achava graça da minha mania, às vezes se aproximava e me lia. Mas sempre sorria, aquele sorriso doce, como quem entende que é tudo amor. E eu amava você nessas horas.
Mas naquele dia, naquele 27, algo aconteceu. Quando cheguei a sala, na mesa de centro, vi a prova da sua delicada lembrança, da sua inestimável existência que fazia meu peito bater feliz. E minhas lágrimas escorreram, doces, repletas da minha incontida felicidade, por que, meu peito sabia, aquilo era um presente. A rosa era frágil, pequenina, mas em cor tão suave, que senti como se as pétalas me pedissem uma carícia. Sorri.
Me aproximei, passos leves, e peguei-a com cuidado, como quem segura algo que pode se desmanchar no mais leve dos sopros. Minha felicidade era assim tão frágil. E a culpa era sua. Mas eu era feliz por culpa sua também, então não me importava. Não naquele dia, pelo menos. Encarava-a, embriagada, quando o recado me chamou a atenção. Estava abaixo, na sua letra elegante, masculina, mas incomumente afinada, bonita. Até sua caligrafia me era apaixonante. Me deixei sorrir ao divisar as palavras e deixei me invadir a gostosa saudade do teu abraço, do me perder na curva do teu pescoço, me aconchegar no teu peito. Sentia vontade de você, e você tinha acabado de partir, por que era manhã. E minhas manhãs eram sempre sem você. Mas o gosto em minha boca era doce, e não amargo, como devia ser. Sua rosa adoçara minha manhã. Suas palavras, tão curtas, tão intensas, me elevaram o espírito. Suas palavras me amavam, segundo você, e não por minha dedução. Era real agora, e meu peito se aquecia com aquela verdade.
Meus pés me carregaram à varanda, quase flutuando, e eu me deixei respirar a manhã, despreocupada. Apenas quando escutei o arrastar da cadeira te percebi. Me virei, gelada, divida entre o medo e a esperança, incapaz de saber se deveria manter o sorriso e acabar com as lágrimas que ainda desciam, inconstantes, pelo meu rosto aniversariante ou se deveria me envergonhar por chorar como uma criança à visão de uma simples flor e um recado cheio de amor. É que eu sempre esperei que você me chamasse de amor. Desde o primeiro sorriso.
E agora você sorria, deslumbrante, de pé na minha sala cor-do-céu, sem saber se ria ou se preocupava, por que meu rosto era só lágrima bem àquela hora da manhã. Mas não te dei tempo, não me dei tempo, não nos deixei hesitar. Voei em seus braços, me apertei no seu corpo e sorri, e chorei, e não disse palavra que você pudesse decifrar. E sei que você me entendeu, por que eu estava tão feliz.
Você sussurrou alguma coisa, algum desejo, alguma coisa que me aqueceu. Busquei seus olhos só pra aumentar meu sorriso, pra me fazer lembrar por que te amava tanto, por que significava tanto ter você ali. Por que o fato de você pra mim pela manhã era muito mais do que apenas companhia. Era promessa. Muda, mas promessa.
Tateei palavras para buscar uma explicação, para uma confirmação. Uma ou duas palavras pra voltar a me esconder em você por pelo menos mais uma eternidade, pois eu só queria ser tua naquele dia, esse seria o meu desejo para quando as velas se apagassem. Eu queria ser tua pra sempre, começando dali. Sussurrei uma conversa.
- Eu achei que você tinha ido embora.
- Não hoje.
E a voz dele era incrivelmente doce nos meus ouvidos. Resisti ao impulso de me enterrar no seu pescoço, mas deixei minhas mãos se aprofundarem nos seus cabelos. Era macio e castanho, muito mais que na noite anterior, como num sonho. Talvez eu sonhasse mesmo.
- Estou tão...
- Feliz? Eu estou também. Mas é que... é seu aniversário. Eu achei que ia embora, mas eu... Eu só queria ficar com você. E achei que... já que tinha que ser, devia ser a partir de hoje.
- Eu não entendi...
- Ficar. Eu quero ficar. Pra sempre. Com você.
- Pra sempre?
- Algum problema com isso?
- Nenhum. - Não, eu não tinha problemas com isso. - Eu só achei que você... não estivesse pronto pra isso. - Hesitei, tentando lembrar suas palavras. - Você mesmo me disse isso.
- Eu mudei de ideia.
- Mas....
- Shh... É tão difícil assim aceitar que eu entendi que amo você e não quero partir?
- É só.... meio incrível.
- Eu prometo, é de verdade.
Sorri. Felicidade era tão intensa, que eu não conseguia mesmo fazer outra coisa . Ele também sorria ao mirar profundamente meus olhos. Me senti nua, e nada poderia ser mais adequado. Eu queria mesmo que ele me tomasse nua, por que eu era toda dele e não havia nada que ele não pudesse ter em mim. E eu esperei tanto que ele pudesse me ter por inteiro desse jeito. Esperei tanto por ouvir daquele amor. Meus olhos marejaram de novo, e ele os acariciou, impedindo minhas lágrimas de rolarem. Pude divisar a palavra boba saindo dos seus lábios. Deixei escapar Eu Te Amo dos meus.
- Eu também. Demorei, eu admito, mas agora não posso fazer nada além de aceitar que eu também.
- Obrigada. É o melhor presente que...
- Sh... E feliz manhã de aniversário. A primeira de muitas que eu vou passar só com você.