- As vezes sinto que posso voar. Que posso ultrapassar as nuvens, ver o mundo do alto e tocar as estrelas ante de me deitar.
- Assim, de repente?
- De repente. Sinto a brisa, o corpo fica leve e de repente tudo é azul e lindo e leve.
Ele sorri.
- E como é lá em cima?
- Depende. Na maioria das vezes é quente e confortável, e as nuvens são macias como num sonho. Mas, às vezes, sinto a água molhando meu rosto e o frio toma meu corpo. Vez ou outra vejo até mesmo um relâmpago cruzar o céu, transformando em luz tudo o que não sou eu. Como tempestade. Como depressão. Mas, mesmo assim... é mágico. É libertador, ainda que assustador.
- Parece bonito.
- É. As vezes, eu tenho vontade de ficar lá pra sempre. Ou de voltar, o mais rápido possível e me esconder em algum lugar quente, seco e seguro. Me esconder em você. Mas então, quando ponho os pés no chão, eu só quero ir até lá de novo e de novo. Me envolver no azul e branco, no rosa do fim da tarde, no cinza da tempestade...
- E por que você não vai?
- Eu bem que queria. Mas não é assim que funciona, simplesmente alçar voo, como pássaro ou pétala de flor. É o vento me leva quando quer, me mostra o quer e me aquece como quer. Não tenho controle, nunca tive, desses talvez sonhos que vivem no meu peito, dessa realidade alternativa de alta pressão que só eu posso viver. Eu bem queria ir mais vezes, eu queria levar você comigo e segurar sua mão enquanto mergulhamos nas nuvens. Mas não posso. E quando eu conto, ninguém vê que é real. Acham que estou alucinando. Dizem que não posso voar.
- O importante é no que você acredita.
E meu riso é contido e talvez ingrato, mas sei que ele está certo. Faço silencio por um segundo inteiro.
- Você acredita?
Pergunto, e ele me olha nos olhos, aqueles olhos profundos que com frequência são gentis quando se voltam pra mim. E de repente me vejo dentro de um oceano escuro, no qual teria me afogado não fosse sua presença familiar na imensidão atrás de mim. Sua presença, eu posso sentí-la, é sempre uma volta pra casa, um abraço suave, uma caricia que se propaga no infinito, ficando pra sempre como impressão em mim. Tateio ás cegas, perdida demais no seu castanho, e encontro sua mão há poucos centímetros da minha. Eu a aperto forte; como quem absorve tudo o que havia nele pra mim. Eu tomava um pouco do que era meu, mas vivia nele. Por que ele também era meu. E estava lá. E eu estava com ele. E eu sabia que ele acreditava em mim. Porque, afinal, ele também carrega sua própria realidade alternativa por aí. Nos olhos escuros de oceano profundo que ele exibe, gentis, só pra mim.