- Achei que eu tinha sido clara quando disse que era pra você não ligar mais.
- Você foi. Eu só não escutei. Você nunca esteve certa sobre nada mesmo.
E ela respira fundo e as palavras somem por um segundo e ela fecha os olhos, por que não quer se deixar levar mais uma vez.
- Por que você faz isso com a gente? Acabou, sabe. Segue em frente. Me esquece.
- Não dá. Você sabe que não dá. A gente viveu demais, você se gravou em mim. Não dá pra simplesmente deixar você pra trás a essa altura do campeonato.
Ela deixa a cabeça pesar sobre o batente, os olhos fechados. Ela não quer escutar nada disso.
- Você foi embora. Você pegou suas coisas, você concordou com tudo isso.
- Você me mandou embora. Eu fui. Mas eu ia voltar, você sabia, por que eu sempre volto. Você é meu porto seguro, no final das contas.
- Não.
É tudo o que ela responde, voz fraca, olhos ainda fechados.
Ele sorri do outro lado da linha.
- Você me completa, menina. Você me entende, me abraça, me acolhe. Não é a mesma coisa se eu não estou com você a noite, se eu não acordo com você pela manhã. É por isso que, apesar de tudo, eu sempre acabo aqui de novo. Apesar das brigas, dos gritos, das promessas de nunca mais. Eu não sei mais viver sem você.
- Isso não é justo. Comigo, com você. Você nunca nos dá a chance de seguir em frente, de tentar um pouco. E se eu quiser isso? E se eu quiser conhecer outra pessoa, procurar outros corpos pra me aninhar? E se eu quiser alguém que me responda quando eu me chamo, que entenda minhas bobagens, que não me ache uma menina boba? Eu não tenho direito a isso? A uma outra chance?
Ele não responde. Ela respira o silêncio dele pela linha telefônica, o corpo se afastando da parede, se pondo de pé só pra enrolar o fio do telefone antigo entre os dedos.
- Eu amo você, menino. Mais do que eu gostaria e mais do que eu devia. Mas eu já não sei se vale a pena, você me ignora, você me esquece, você me machuca quando vai embora. Você me machuca quando diz que é melhor silenciar. Você sabe, eu vivo de palavra. E esse silêncio me mata, menino, esse silêncio acaba comigo.
- Eu só quero que você esteja feliz.
E aí ela não responde, por que ela não sabe bem se dá pra ser feliz sem ele, também.
Ele respira o silêncio dela por minutos imensuráveis, e ela sabe que ele vai ceder. Ele sempre cede aos desejos dela, no fim das contas.
- As vezes eu queria que você lutasse mais pela gente
Ela diz, a voz tão baixa e tão fraca que ele quase poderia jurar ter inventado.
- Me desculpa.
- Está tudo bem. Eu sempre soube como você era, como era seu silêncio, seu caminhar. E a boba fui eu de achar que era só por que você estava acostumado a ser sozinho. Eu estive errada desde o começo, achando que você devia mudar, que ia se abrir pra mim, me amar como eu esperava que fosse.
- Não fala assim, menina...
- É verdade. Eu devia ter acolhido você por inteiro, de uma vez. Mas eu sempre estive esperando que você batesse na minha porta no meio da noite, desesperado por um pouco mais de mim. Eu sempre acreditei que ia ser diferente depois que a gente se tocasse, que eu pudesse colocar meus braços ao redor de você. Eu achei que a gente ia ser pra sempre, ficar pra sempre, dividir pra sempre. Mas as pessoas não mudam assim, as pessoas encontram quem se encaixa com elas. E a gente não encaixou direito. Eu queria, você queria, mas não foi assim. Foi só no peito, no sentir. E eu sei que você tem essa mania de me colocar em primeiro lugar, que você tenta me amar, mas nossas palavras deixam sempre a gente na mão, com o coração partido. Fazem a gente acabar tendo conversas longas demais as quatro da manhã no telefone, pra não resolver nada. Por que não dá pra resolver.
- Não me faz ir embora de novo, menina. Eu só quero ficar com você.
É um pedido e ela o escuta suspirar. Ela aperta mais os olhos por que a dor é quase física e ela não quer chorar. Ela se vira de costas pro aparelho, como se pudesse fugir do som, mas o fone ainda está em seu ouvido, tão apertado contra os dedos que a pele até embranquece.
- Mas dói.
- E eu só quero que você esteja feliz. - Ele repete, e ela abre os olhos como quem se prepara pra encarar de frente um golpe forte demais. - Eu amo você, menina.
- Eu também.
Ela diz, tão baixo e tão ardente que ela tem medo dele insistir mais um pouco. Mas isso não é bem do feitio dele e o silêncio entre os dois se perdura por outra era, pendurado entre os dois telefones como uma sentença.
Quando finalmente encontram voz, voltam a falar quase ao mesmo tempo.
- Eu vou desligar.
- Eu estou no corredor.
E ela se põe de fé num salto, o fio enrolado braço adentro, toda elétrica de repente.
- Você o quê?
- Estou de pé no corredor, encarando nossa porta, sem coragem de ir embora. Eu te amo, eu te amo demais, e eu quero que você seja feliz mesmo que seja sem mim, mas eu não consigo sair desse corredor sabendo que você está aí bem do outro lado. Eu não consigo me afastar de você de novo. Já foi demais da ultima vez.
- Você não... Eu não posso abrir, menino. Se eu abrir, não vai ter fim.
- Você não sabe. Pode dar certo.
- Você conhece a gente. Não vai.
E ele hesita por um segundo, como quem pesa as opções. A ligação cai, e a estática na linha parece apunhalar sua audição sensível, e ela se sente incapaz de colocar novamente o telefone no gancho, lágrimas nos olhos, mundo fora do lugar até que ela ouve a batida familiar na porta da frente.
- Abre a porta, menina. Eu não quero ir a nenhum lugar.
E ela se confunde, dá um passo pro lado e tenta colocar o fone no gancho ao mesmo tempo, se enrolando em fios, rindo entre lágrimas, sem saber o que será de sua sanidade agora que ele está ali, tão perto, desafiando seu bom senso. Abre as portas aos tropeços, se joga nos braços familiares e se deixa perder na curva do pescoço que ela já acostumou chamar de lar.
E ela sabe que é um erro. Sabe que ele ainda vai ser silêncio, que ela ainda vai ser palavra, que eles ainda vão discutir por coisas bestas e que ele vai bater a porta ao invés de confrontá-la. Mas não tem jeito.
Ela não quer ir a lugar algum, também.
Ela já acostumou a chamá-lo de lar.